No caso dos romances, dos filmes e das peças de teatro muitas pessoas imaginam que lhes estão sobretudo a ser contadas histórias; e no caso da poesia que lhes estão a ser comunicados sentimentos. Por isso, ao falar de romances ou filmes ou peças de teatro que viram ou leram insistem em contar a história a terceiros; e ao falar de versos acham que a sua obrigação consiste em admirar as palavras que fazem os poetas desincumbir-se do recado.

Ora acontece que há muitos poemas em que se contam histórias; e também qualquer história pode suscitar a nossa curiosidade por palavras ou sentimentos. Nalguns casos o nosso interesse pela história faz-nos perder a paciência com as palavras ou os sentimentos; noutros a nossa curiosidade por palavras e sentimentos torna-nos indiferentes à história. E quando queremos fazer as duas coisas ao mesmo tempo há um ar de comer e beber ao mesmo tempo que nos engasga. Mas pode-se aprender a técnica: juízes ou psicanalistas são treinados para tirar conclusões sobre histórias só depois de tirar conclusões sobre palavras, e sobre quem as está a usar.

Contar a história não mostra necessariamente que se prestou atenção ao romance, ao filme, à peça ou aliás ao poema: só mostra que se tentou contar uma história; e mostra também uma certa impaciência com tudo o que não seja a história. O romance O Crime do Padre Amaro, o primeiro publicado por Eça de Queiroz (1845-1900), que se passa sobretudo em Leiria, não é a só a história do Padre epónimo, nem um exemplo de crimes que podem acontecer em Leiria. Saber que a namorada do Padre morre no fim não nos estraga a festa.

Uma curiosidade nesse romance tem justamente a ver com palavras. Quase no fim do livro, na manhã do enterro da namorada, a caminho da capela, “caía muito miúda, uma chuva regelada.” Depois Eça observa que “quatro trabalhadores da quinta, abaixando a cabeça contra a chuva oblíqua, levavam numa padiola o esquife que tinha dentro o caixão de chumbo.” A expressão “chuva oblíqua” pode espantar. Muitos de nós tinham-na já encontrado no título de um poema em seis partes de Fernando Pessoa, publicado no segundo número da revista Orpheu, em 1915, e lido nas escolas. Na segunda parte desse poema descreve-se uma missa à chuva.

É irrelevante que Pessoa tenha, por acaso ou de propósito, usado a expressão de Eça de Queiroz. E francamente as duas missas são muito diferentes. O que é relevante é que, quando reparamos na coincidência, já não podemos voltar à sequência de O Crime do Padre Amaro da mesma maneira. A expressão “chuva oblíqua” passou a importar mais que a história do crime do Padre Amaro; ou pelo menos, ao resumir a história do romance, somos mais tentados a dar conta da coincidência; e quanto ao poema de Fernando Pessoa, ficou mais parecido com Leiria.

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