No seu ensaio, Man, the State and War, Kenneth Waltz diz “que a guerra será sempre inevitável na ausência de uma autoridade acima dos Estados para prevenir e conciliar conflitos”. Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Ucrânia, entre outros, são exemplos de que a guerra acontece porque não há nada nem ninguém que a impeça. Serve isto para dizer que tanto a ONU como a UE são irrelevantes enquanto garantes da paz, porque não conseguem remover o carácter anárquico do sistema internacional. Mas podem, todavia, exercer um relevante papel em matéria de mediação de disputas e conflitos, tanto interestatais como intraestatais.

A União Europeia é disso um exemplo de sucesso, ao ponto de ter diluído a memória de guerra intraeuropeia. Uma diluição que nos levou a excluir, é certo, qualquer retrocesso de valores democráticos ou do seu objectivo último, que é fazer reinar a paz onde havia guerra. E isto só foi possível porque os pais fundadores criaram uma intricada rede de negociações segundo a conhecida máxima de Jean Monnet de que “é melhor discutir à volta de uma mesa do que num campo de batalha”. A verdade é que, graças a ela, a guerra tornou-se, senão impossível, pelo menos inconcebível. E foi. Até ao passado dia 24 de Fevereiro. Dia em que a palavra “paz” deixou de ser mencionada na UE.

As causas que desencadearam a mudança da natureza da União Europeia são conhecidas: a loucura lúcida de um tirano que decidiu redesenhar as fronteiras e as zonas de influência da Rússia de acordo com a tradição autocrática adoptada por Estaline. Aconteceu que, desta vez, esperava-o uma resistência heróica com a qual não contava. Nem ele nem o Ocidente.

Dito isto, esperava-se que UE retomasse resoluta o papel que a História lhe atribuiu, o de evitar que a Europa voltasse a ser um palco de vitórias e derrotas, ou seja, que induzisse as partes a um cessar-fogo imediato. Mas, não. Ela anunciou uma série de simulacros de sanções, algumas, as mais eficazes, com entrada em vigor muitos meses depois de terem sido aprovadas, e convenceu-se de que Putin se renderia em seguida com um pedido de desculpas à UE e aos seus cidadãos. Mas isso não aconteceu. As sanções “sem precedentes” não enfraqueceram a posição absolutista de Putin nem serviram para dar força à Ucrânia nas negociações. Pelo contrário: serviram para alargar e prolongar o conflito, para exacerbar a reacção russa e incentivar o uso de armas cada vez mais mortíferas. Então ela declarou-se impotente. Incapaz de produzir e promover qualquer iniciativa para parar ou resolver o conflito. E parece totalmente incapaz de o fazer como comunidade e como estados individualmente. “Putin não quer a paz”, disse um Draghi resignado. A seguir retirou-se para o seu pedestal de utopismo e de arrogância, delegando ao até então por si considerado a escória da humanidade, Tayyip Erdogan, o papel de pacificador.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não quero com isto de dizer que negociar um cessar-fogo é fácil. Não é. A diplomacia é uma actividade complexa, como ensina o Manual Diplomático de José Calvet de Magalhães, mas é sempre possível encontrar um equilíbrio quando há essa vontade. Mas quando se parte da afirmação de que em nome da democracia e de dos valores ocidentais “Putin não pode vencer esta guerra”, “custe o que custar”, conforme decidiram von der Leyen e Roberta Metsola, nenhum acordo pode ser alcançado.

Assim, a UE, que nasceu como antídoto da guerra, é lançada numa frenética guerra sem estar em guerra e passa a investir na guerra. “Não devemos perder este impulso que a guerra nos dá”, diz uma von der Leyen com uma expressão desprovida de emoção. Então, da mesma forma cínica que usou a pandemia para comprar vacinas testada à pressa em quantidades absurdas e por valores exorbitantes, ela quer usar a guerra na Ucrânia como desculpa para acelerar a militarização da UE. Ao fazê-lo, trai a visão dos seus fundadores que queriam evitar uma nova corrida armamentista.

Helmut Kohl, que costumava dizer, diante dos escombros do Muro de Berlim, que “a Europa é uma questão de paz ou de guerra”, deve dar voltas no túmulo por ver a União que ajudou a fundar a optar pela guerra, ao ponto de arriscar um confronto directo com a potência que tem o maior número de ogivas nucleares do mundo, que pode matar Sansão com todos os filisteus.

É constrangedor assistir a este delírio de grandeza. E é um paradoxo ouvir o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken dizer que está “pronto” para encontrar uma solução diplomática com a Rússia para evitar o “Armagedom”. Paradoxo, porque deveria ser a UE a primeira a interessar-se por uma trégua, para não dizer por uma paz, dado não ter um Oceano a separá-la da zona de conflito.

Mas o que fazer quando von der Leyen & Cia diz que a única maneira de enfrentar Putin é militarmente? Se apoiar com armas a Ucrânia no início da invasão fez todo o sentido, é incompreensível que, oito meses depois, e diante da ameaça de Putin de destruição mútua assegurada e da boa noite mundo, a UE continue a pedir mais armas e tanques e fundos para Kiev, ou que von der Leyen diga que “este é o momento para mostrar a nossa determinação, não a pacificação”, confirmando o quão idiota e masoquista pode ser a UE.

Ninguém ali pensa que se a Ucrânia cair no pesadelo nuclear, a UE, com von der Leyen à cabeça, não poderia deixar de ser considerada moral e politicamente co-responsável por tamanha barbárie, uma vez que o ataque nuclear não surgiria do nada, isto é, como um gesto de Putin inesperado e imprevisível, mas como consequência de uma escalada previsível e racionalmente calculada. Como poderá a UE resistir à onda de desprezo popular que certamente suscitaria por ter sido capaz de chegar tão longe? É a derrocada triste da União do Nobel da Paz.

É francamente insano. E mais insano se torna quando se sabe que a Europa não tem sequer um escudo de defesa capaz de lidar com o poder nuclear de Moscovo. O sistema Twister, capaz de parar mísseis hipersônicos, só deverá ficar concluído em 2030, e o sistema de defesa antimísseis da NATO, em Ramstein, não intercepta mísseis hipersónicos como o Zircon russo.

O que subjaz a toda esta loucura é a representação ideológica e moralista que reduziu a palavra “paz” a quase um sinónimo de rendição, derrota, traição, e numa divisão moral absoluta entre o bem (nós, os países do Ocidente e aqueles que automaticamente lhe foram “confiados”, como a Ucrânia) e o mal (os outros, a Rússia e o resto do mundo), conforme explicou Josep Borrel (quem mais?) recentemente num discurso em Bruges.

Com semelhante arsenal narrativo e figurativo, digno de um regime totalitário, como pode alguém explicar que paz não significa negar a realidade ou, pior, colocar o agressor e o agredido no mesmo nível, ou esquecer que a paz tem de ser justa? Que ninguém ignora este princípio? Muito menos a Europa, palco de tantas pazes injustas que abriram caminho para guerras ainda mais devastadoras e cruéis. Então, porque se tornou tão difícil falar sobre a paz? Porque a máfia woke que pulula nas redacções de jornais, media e redes sociais, decidiu que qualquer apoio a um acordo negociado – até mesmo propostas que o próprio Zelensky parecia apoiar no início da guerra – equivale a ficar do lado de Putin (negacionistas 2.0).

Eles acreditam que basta repetir para si mesmos que tudo terminará quando Putin deixar o poder e a Rússia for derrotada. E se não acontecer? E se isso acontecer quatro minutos depois de um ataque nuclear varrer várias cidades europeias? Há alguém disposto a garantir que tal não acontecerá? E sobretudo: há alguém capaz de lhe chamar “vitória” ou mesmo “paz”?

E ainda há quem faça comparações com o nazismo da Segunda Guerra Mundial. Mas a Alemanha não estava sozinha, enquanto a Rússia está. E, acima de tudo, a Europa e os EUA decidiram lutar e não ficar a ver os outros lutarem. E acabou, de facto, com a bomba atómica.

Em suma, não é impossível que a História se repita. E não há nada mais inquietante do que ver o perigoso sentimento de inevitabilidade e resignação que se está a espalhar na Europa, segundo uma ideologia de sacrifício hedionda e de personalidades repugnantes, estranhas à natureza da União Europeia.