Aprendi, numa classificação rudimentar, a distinguir os animais selvagens dos amimais domésticos. E a eleger; para além deles, os animais racionais. Os animais selvagens teriam o seu habitat. Fariam parte dum ecossistema tendencialmente equilibrado. E seriam agressivos quando se tratava de se defenderem, sempre que se sentiam ameaçados. Os animais domésticos seriam animais de companhia. Dóceis, regra geral. Capazes de se adequar às regras dos seus donos. Com a sua personalidade, claro. E tão intimamente sintonizados com eles, que comunicariam através de formas tão subtis de linguagem que “falar” se poderia fazer à margem da necessidade das palavras. E, finalmente, os animais racionais. Muito, ainda, numa lógica judaico-cristã. Que faria da razão, e da forma como discorremos e a usamos, o elemento-chave que nos distinguiria de todos os outros animais.

É verdade que, entre inúmeros outros atributos, os animais racionais são capazes de amar. E convencionou-se (mal!) atribuir ao amor “razões que a razão não admite”. O que, por outras palavras, foi fazendo com que se fosse supondo que, quando se fala de relações amorosas, nem sempre seremos tão esclarecidos e racionais como seria suposto. É claro que somos inteligentes em demasia para nos resignarmos a ser, numa relação, “animais de companhia”. E, pelos mesmos motivos, a agressividade humana não é um lado de “animais selvagens” que existirá em nós mas, mais do que parece, um exercício que conjuga a ira com a inteligência. Mas, depois, sucedem-se os relatos de violência doméstica. Com a particularidade de sermos animais racionais, não é? O que nos ajuda a perceber que, ao contrário dos outros animais, só as pessoas são violentas. Mas, porquê?

Como imaginam, já perdi a conta às vezes que escutei pessoas com imensas responsabilidades científicas — e, até, de Estado — dissertarem sobre a hipótese da natureza congénita da violência. Regra geral, com interpretações tão parciais e tão xenófobas que acabavam sempre a referir-se à violência “dos outros”. Sempre dos outros. Como se essas formas muito pouco racionais de ler a violência não fossem, elas próprias, um exercício vizinho da violência. Porque são avulsas. Quase populistas. E pouco compreensivas, no sentido de a ler em perspectiva em busca dos porquês da sua existência.

Seja como for, quando vejo alguém a congeminar sobre a violência como uma “característica de fabrico” de algumas crianças, eu convido-as sempre a dar um salto até uma unidade de prematuros. Para espreitarem para “fetos fora do útero” (alguns, com 500 gramas!). E perceberem como eles são sensíveis ao toque e ao trato. E como são, desde sempre, tão inacreditavelmente competentes para a vinculação. Vinculação, aliás, com que a inteligência humana transformou essa necessidade incontornável de sobrevivência num exercício a que chamamos amor. A vinculação encontra nas pessoas seguras a quem nos ligamos recursos para sobrevivermos. O amor confere-lhes a inacreditável capacidade delas nos darem vida. Sempre mais vida.

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Talvez por insistência grave numa distracção incompreensível, há, todavia, quem teime em não reparar que há muitas crianças cujos apelos ao apego esbarram em pais que, desde muito cedo, se tornam incapazes de identificar, de acolher, de nomear e de “solucionar” as necessidades fundamentais dos seus filhos; mesmo quando eles são muito pequeninos. Ou mesmo quando eles as expressam através duma capacidade de comunicar sem palavras tão semelhante à forma como nós e os outros animais comunicamos. Mas a competência para intuir precisa, muito mais do que a nossa racionalidade, da forma como reconhecemos os sentimentos como a forma mais esclarecida de pensar. E, portanto, sim, há mães e pais que — pelo sofrimento que se impõe em quase todos os seus gestos; pela forma como se sentem atolados em azedume, ressentimentos e em amargura; pelo modo como nunca se sentiram filhos; ou pelo jeito como projectam todo o seu desequilibro sobre os seus filhos — são maus. Maus pais! Magoam. Promovem, desde muito cedo, o sofrimento. E fazem com que o crescimento de algumas crianças seja uma sucessão de apelos ao apego insatisfeitos. Que as faz crescer de desamparo em desamparo. E que as leva a desconfiar de todos os que lhes possam querer, simplesmente, bem. Tal é a forma como aprenderam a sentir que, para elas, o amor é uma vilanagem que contribui para destruir. Se bem que, muitas destas crianças – quando no seu crescimento houve momentos (às vezes, vividos em parcas experiências) em que um bocadinho menos doente destes pais ou os cuidados de uma avó ou doutro cuidador lhes deu um contraponto muito precoce às experiências de sofrimento cumulativo que foram vivendo – se agarrem a esse ponto seguro nas suas vidas. E não só não resvalam para a violência (com que se expia o desespero e o ódio e a inveja por não se sentirem amadas), como se agarram, vida fora, em função de um bem querer efémero, num argumento com que procuram mais amor. O amor é, neles como em nós, o antídoto da violência.

É claro que não vale a pena afirmar que amar não é uma questão de género. Logo, o problema que teremos em mãos, para resolver, será um outro. Diferente. Não, não há como ignorar a violência doméstica que prolifera no mundo mais escolarizado que a Humanidade já construiu. E no mundo que melhor cuida das crianças que já conhecemos. E, por mais que a violência tenha muitos formatos que farão dela transversal a todos os géneros, não há como ignorar que a violência doméstica assume, sobretudo, características de violência de género. Todavia, retirando as crianças que são vítimas, muito precoces, da violência pouco esclarecida e assustadoramente continuada dos seus pais, temos em mãos uma “violência doméstica de classe média” (deixem-me pôr o ênfase, por um momento, assim). Uma violência protagonizada por pessoas que, se não foram devidamente amadas, terão sido mimadas. Uma violência de pessoas informadas. Supostamente, esclarecidas. Uma violência que não faz perguntar: “mas como é possível ser-se bom e informado e mau e estúpido, ao mesmo tempo.” Mais: como é possível que os nossos filhos que, à medida do que fomos capazes, amámos, se tornem — no contexto do namoro ou duma relação amorosa ou da família que construíram para além de nós — violentos? E aqui, sim, temos “o problema”. Porque é que, cada vez mais (e, muitas vezes, cada vez mais cedo) as manifestações de violência parecem atingir pessoas que, a priori, não terão histórias de vida que nos levaria a supor que se viessem a tornar violentas? Pode o amor contribuir para a violência?

Aparentemente, pode. Não será um amor “despoluído” de vícios de forma. Será, em determinadas circunstâncias, um amor que criou muitos enviesamentos de personalidade que podem contribuir para a violência. De que modo?

Pela aflição com que pomos na vida dos nossos filhos como fazemos com que ela seja, sobretudo, trabalho, trabalho e mais trabalho, e muito pouco vida, experiências de relação, sonho, fantasia e jogo. Pela forma como menosprezamos o modo como os nossos filhos não só não brincam como não lhes damos tempo para serem crianças e adolescentes, e com isso os precipitamos para um crescimento mais mecânico do que humano. Através da maneira como teimamos em não perceber que a agressividade é um património da Humanidade (que eles não aprendem!) para que, de degrau em degrau, eles, hoje, nos digam: “Não gosto de ti!” e, amanhã, andem à bulha com um irmão, percebendo, em cada um desses actos, que agredir quem nos ama compromete a forma como o seu amor por nós fica (momentaneamente) comprometido, servindo isso como barómetro para a forma como manifestamos os nossos sentimentos. Pela forma como a vida familiar é, hoje, bem mais silenciosa e mais amiga dum estar “autístico” que da palavra dita, do argumento, do conflito e do reencontro. Pela maneira como os nossos filhos são demasiado educados para a contenção e para o impulso, onde a tolerância à frustração, a capacidade de esperar e de perseverar são, vezes demais, substituídas por “fugas para frente” — agitadas, consumistas, excessivas, pouco singulares e muito miméticas. Pela forma como os nossos filhos vão crescendo numa ilusão de que são melhores do que, efectivamente, são, e vão sendo tão “levados ao colo” que têm derrotas de menos na vida e parecem ir acumulando, devagarinho, uma espécie de “imunodeficiência” adquirida à dor, ao erro, e ao insucesso. Pelo jeito como eles vivem demasiado num universo de algum egocentrismo e de alguma vaidade, onde a humildade, a empatia e o cuidar parecem não ter lugar. Pela forma como as regras e o bom senso dão lugar, vezes demais, à ilusão de que eles têm “espírito de liderança” quando estão a ser, simplesmente, insolentes e mal-educados.

Como podem os nossos filhos, quando crescem sem os recursos indispensáveis para viver um conflito, não reagir de forma irada e furiosa quando não aprenderam a escutar “o outro”, a senti-lo e a imaginá-lo? Como podem não interpretar as experiências de humildade com que o amor nos surpreende como episódios de humilhação? Como podem não estranhar o desprendimento que uma relação também requer como uma ofensa à sua vontade e ao seu egocentrismo?

A violência é, sem dúvida, uma promoção do sofrimento sem culpabilidade, sem reparação e sem remorso. A violência é uma fuga em frente em função duma vergonha que persegue e que sufoca. A violência cozinha-se com pensamentos que não se pensam. E é só por isso que ela se projecta e se “exorciza” sobre os outros em vez de se desconstruir e comunicar.

Pode o amor contribuir para a violência? Pode. Por descuido nosso. O que, quando se ama, não tem desculpa.