Por ocasião do seu doutoramento honoris causa na Universidade de Lisboa, António Guterres fez um discurso que teve grande eco na imprensa. Mas entre aquilo que foi destacado nas notícias e nos títulos apareceram afirmações sobre educação que julgo deverem ser lidas com algum sentido crítico. Disse, por exemplo, que “o que fundamentalmente hoje interessa nas universidades e no sistema educativo não é tanto o tipo de coisas que aí se aprende, mas a possibilidade de aí se aprender a aprender”.

Será que isto se pode dizer, e de forma tão geral? Na realidade, o “tipo de coisas que se aprendem” tem a sua importância. Muita importância!

Gostaria algum de nós de ser tratado por um médico que, na universidade, tivesse aprendido Literatura Germânica, não tivesse prestado grande atenção à Anatomia nem à Histologia, mas que tivesse sido fantástico a “aprender a aprender”? Gostaria algum de nós de andar num avião mantido por uma equipa de mecânicos que, na sua escola de formação técnica, tivessem estudado Anatomia Patológica, nada sobre motores nem sobre aeronáutica, mas que fossem extraordinários a “aprender a aprender”?

Exagero? Pensemos na mensagem que, no limite, se está a transmitir aos estudantes: aprendam a aprender, não interessa tanto o que aprendem. Não parece uma mensagem feliz.

Mais à frente, Guterres afirmou que tem netas com menos de dez anos e disse que “o seu êxito dependerá essencialmente das oportunidades de educação que vão ter, da capacidade que lhes derem para serem capazes de se adaptar à mudança, de desenvolver novas formas de intervenção na sociedade, novas atividades profissionais.”

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Julgo que todos estamos de acordo. Mas em seguida acrescentou: “seguramente, os conteúdos concretos que vão ter na escola vão estar completamente ultrapassados quando exercerem as suas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade.”

Ser-me-á permitido discordar? Façamos então um pequeno exercício mental: pensemos no que aprendemos na escola (no meu caso há várias décadas…), ou pensemos no que hoje se aprende: aritmética, geometria, história de Portugal, história mundial, português, inglês, geografia, ciências, etc., etc. De tudo isto, qual é a fração que será ultrapassada? 99%? 50%? 10%? Eu arriscaria dizer que, mesmo que 50% estivessem ultrapassados, valeria a pena ter estudado para saber os outros 50%. Mas arrisco mais: direi que talvez apenas 1% do conhecimento que adquirimos na escola estará ultrapassado; “completamente ultrapassado”, talvez nem metade disso.

Repito: não devemos passar nenhuma mensagem de desprezo pelos “conteúdos concretos”.

Vou citar Larry Sanger, fundador da Wikipedia, certamente alguém à frente do seu tempo: “as capacidades específicas necessárias para o mundo do trabalho eram, e em larga medida continuam a ser, aprendidas no próprio emprego. Então vejamos, o que terá sido para mim mais útil aprender em 1985, quando tinha 17 anos: todos os processos e truques do WordPerfect [processador de texto então em voga] e do BASIC [linguagem de programação muito usada na altura] ou a História dos Estados Unidos? Não há que haver dúvidas: o que aprendi sobre história mantém-se aproximadamente o mesmo, sujeito a algumas correções; as competências de WordPerfect e de BASIC deixaram de ser necessárias”.

A conclusão é simples: há matérias – “conteúdos concretos” – que perduram. E quanto mais universais e mais antigas mais deverão perdurar. Ou seja, quando eu tiver a sorte de ter netos, que espero vir a ter, vou dizer-lhes “aprendam matemática, aprendam história, aprendam geografia, aprendam literatura, aprendam línguas, pois esses conteúdos concretos não vão estar ultrapassados quando exercerem as vossas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade”.

Mas o problema é muito mais vasto. Prometo a mim mesmo uma outra crónica para breve. Adianto apenas dois resultados científicos sobre a aprendizagem.

Primeiro. Não existe capacidade sem conhecimento específico, ou seja, as ditas “competências gerais” são essencialmente uma invenção. Por exemplo, para a leitura crítica de um texto é essencial ter um vocabulário rico, conhecer o tema discutido – política? história? ciência? arte? – e beneficiar de conhecimento de textos semelhantes ou sobre temas semelhantes. Como diz o educador norte-americano E. D. Hirsch, “a capacidade de leitura, de comunicação, de leitura crítica e tudo o mais são intrinsecamente conhecimento específico. Mais ainda: se tivermos conhecimento do tema em causa e nos faltar apenas a proficiência técnica, teremos mesmo assim um desempenho melhor (na análise do texto e na sua crítica) do que alguém proficiente, mas a quem falte o conhecimento relevante.”

Segundo. A partir de uma série de experiências clássicas iniciadas nos anos 40 do século passado e desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas. O pensamento crítico, o “aprender a aprender”, a capacidade de análise lógica não existem independentemente dos “conteúdos concretos”. Como explica o cientista cognitivo Daniel T. Willingham, “o pensamento crítico (tal como o pensamento científico e outro pensamento específico) não é uma capacidade. Não há um conjunto de capacidades de pensamento crítico que possam ser adquiridas e utilizadas independentemente da sua aplicação.”

Conclusão: ‘aprender a aprender’ em vez de aprender, é o caminho direto para nada aprender, nem sequer ‘aprender a aprender’.