Nascemos humanos. É verdade que sim. Mas, com o tempo – por causa dos “trambolhões” da nossa vida, da agitação dos dias e, sobretudo, em consequência dos ressentimentos que guardamos – raramente permanecemos assim. Não somos (sempre) tão humanos como supomos. O que, por outras palavras, quer dizer que, facilmente, nos tornamos mais centrados em nós próprios. E mais egoístas do que gostaríamos.

É curioso que passemos a vida a falar de burnout, como se fosse consequência do excesso de trabalho.  Quando, no fundo, resulta do excesso das coisas desarrumadas da nossa vida e das angústias que isso traz; e que “varremos” para baixo do tapete. O burnout decorre dos pensamentos por pensar que se acumulam. Os “trambolhões”, a agitação e, sobretudo, os ressentimentos são “amigos” do burnout. Pensamos 24 horas por dia; sim. Mas entre produzirmos pensamentos e compreendê-los, sintetizá-los e transformá-los em coisas simples, claras, inteligíveis – e, já agora, verdadeiras em relação aquilo que se passa dentro de nós – vai alguma distância. São poucas as vezes em que nos atrevemos a compreender. E é por causa disso que a humanidade, dentro de nós, se vai desencontrando.

É claro que falamos, muito regularmente, de empatia. Mas é, grande parte das vezes, um formato “fast food” como outro qualquer. No fundo, a empatia é uma forma de sentirmos “o outro” em nós. Ora, precisamos muitas vezes da música, de uma história do cinema, de um aparte de um filho ou de uma história passageira da vida real a servir de “abre-latas” para que o “despertar dos sentimentos” se dê. Vivemos “agrilhoados” em nós, de certa forma. O que torna muito difícil sermos empáticos. Por mais que queiramos. Já a compaixão – que passa por sentirmos em nós o sofrimento do “outro” – torna-se, diante de tantas dificuldades, mais inacessível. A compaixão da religiosidade nem sempre é uma verdadeira compaixão. Às vezes, representa mais a filiação a um princípio moral que uma “força que vem de dentro”. Genuína. E bondosa.

Vendo bem, talvez haja quatro aspectos que nos tornam humanos: a capacidade de nos atrevermos a compreender; a empatia; a compaixão; e o arrependimento. Que, em conjunto, são a “argamassa” da bondade. Não quer isto dizer que, em muitas circunstâncias e, sobretudo, na intimidade das nossas relações mais preciosas, não consigamos ser humanos e bondosos; claro que somos. Mas nem sempre isso está nos nossos actos mais vulgares. Quando, por exemplo, a dor dos outros se torna nossa vizinha. Como acontece, agora, com o covid 19.

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Um vírus que se estende, de forma fulgurante, a todos os continentes, a todo os grupos humanos, a todas as classes e a todos os credos ajuda-nos a perceber que, ao menos, diante do sofrimento, somos iguais. De forma estranha, mais nada, nos últimos tempos, nos deu a todos este sentimento (cosmopolita) de sermos iguais! E de fazermos parte de um mesmo todo. Ao contrário de um certo sentimento tribal que, à boleia do populismo, faz com que se despreze o conhecimento como aquilo que nos liga, a todos, a um mundo melhor.

Para a maior parte de nós, estarmos fechados em casa não foi, ainda, uma dor. Foi um constrangimento. A crise económica que aí vem pode, essa sim, trazer consigo a dor. Tantos milhões de pessoas infectadas e tantos mortos não merece dúvidas, sequer, da nossa parte. Mas como não é um sofrimento que nos tenha, ainda, entrado pela casa dentro (pelo menos, a grande parte de nós), não sendo uma espécie de ficção a partir de factos reais, nem sempre nos leva a atrever a compreender. A sermos empáticos. E à compaixão. A pandemia e aquilo que ela nos vai trazendo está-nos a tornar mais humanos. Mas precisamos de mais tempo para que o mundo “renasça” com isso.

A questão que se pode colocar, de seguida, é se não “precisaremos” de algum sofrimento para acedermos à necessidade de pensar os pensamentos que se acumulam por “arrumar” dentro de nós. Para pormos verdade naquilo que vivemos. E a reposta é sim. E quando esse apelo, por causa de um vírus, se coloca a todos – de norte a sul – talvez isso nos devolva (desde a economia, à política e às relações sociais) à humanidade. E à verdade de que todos precisamos para que o melhor do mundo passem a ser as pessoas.