Mais do que Mário Soares, foram os dois engenheiros que transformaram o PS num partido de poder. Guterres e Sócrates conseguiram o que nenhum outro líder socialista alcançou: duas vitórias eleitorais seguidas, dando ao partido o maior longo período no poder em toda a sua história. E Sócrates ainda chegou onde Guterres não foi capaz: à maioria absoluta.

Entre 1995 e 2009, o PS ocupou o centro político, o qual abandonou temporariamente após a saída de Guterres. Mas, com Sócrates – ajudado pelo desastre de Santana Lopes – recuperou o eleitorado do centro. Além de ter conquistado o centro eleitoral, o PS tornou-se igualmente a força política mais influente nos centros do poder em Portugal. No Estado e na função pública, a influência socialista não parou de aumentar desde 1995. Esse poder estendeu-se igualmente ao sector privado: desde as grandes empresas de construção aos bancos, os pilares da economia nacional até 2011.  Aplicando aos socialistas o termo que a esquerda gosta de usar para a direita, o PS transformou-se na esquerda dos interesses (e, podemos acrescentar, dos negócios).

A transformação do PS num partido de poder enfraqueceu consideravelmente a sua identidade de esquerda. O pensamento de Guterres está tanto à esquerda como o da maioria dos dirigentes do PSD e do CDS. Como um dia me disse um amigo socialista, “só quem é de esquerda, é que sabe que Guterres não é de esquerda.” Eu, obviamente, não sabia; mas acreditei no meu amigo. Guterres será um social-democrata, um democrata-cristão, mas não é seguramente um socialista. Mais importante: a maioria dos seus camaradas não o viam como alguém de esquerda; e isso conta. No entanto, aceitaram-no enquanto lhes deu poder.

O verdadeiro sucessor de Guterres (com as devidas desculpas para Ferro Rodrigues), Sócrates, não é nem de esquerda nem de direita. É simplesmente um homem de poder. Quando concorreu à liderança do partido, contra Alegre, foi apresentado como o candidato da “ala de direita” do PS. E quem é de direita sabe como em 2005, Sócrates atraiu muitos eleitores de direita (devo dizer, que no meu caso, isso não aconteceu). Mas também devo dizer que o que mais me repugnou em Sócrates não tem nada a ver com a esquerda, mas como o modo autoritário e sem quaisquer escrúpulos como exerceu o poder. Enquanto PM, Sócrates não governou à esquerda ou à direita. Só lhe interessava uma coisa: o poder. Mantê-lo ou aumentá-lo. E tal como no caso de Guterres, as esquerdas sabem que o “engenheiro” da Covilhã não é de esquerda (embora também não seja “o líder que a direita gostava de ter”). Aliás, o ódio entre Sócrates e as esquerdas fora do PS foi sempre claro entre 2005 e 2011. Revejam os debates entre Sócrates e Louçã, para perceberem a natureza desse ódio.

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António Costa também é um homem do PS construído pelos engenheiros, o partido de poder. Foi sempre um pragmático, centrista e até visto como um político da ala social democrata do PS. Nunca foi uma daquelas figuras empenhadas em preservar a pureza ideológica ou até a natureza socialista do partido. Até esta campanha, ninguém se admiraria em vê-lo como um participante numa solução de entendimento entre o PS, o PSD e o CDS. Mas Costa foi obrigado a fazer um pacto com o diabo para chegar à liderança do PS. Os anos de austeridade radicalizaram muitos membros e o discurso do partido. O PS pós-2011 olhou para a coligação como uma viragem política à direita. Em vez de ocupar o centro, foi para a esquerda. E Costa, provavelmente contra os seus instintos, seguiu o partido, não o liderou.

O líder do PS acreditou que um programa económico moderado e a zanga do eleitorado com quatro anos de austeridade seriam suficientes para recuperar o eleitorado do centro. Teria assim que concentrar a sua campanha no voto útil à esquerda do partido. Para conquistar esses votos, teria que manter o discurso radical que o PS construiu desde 2011. O radicalismo do PS resulta assim de quatro anos de oposição à austeridade, da estratégia eleitoral e, na última semana, do nervosismo de Costa. Esta deriva ideológica e radical ignorou a grande lição das vitórias de Guterres e de Sócrates: as eleições ganham-se ao centro e com um discurso moderado. Se Costa perder as eleições, uma das maiores tarefas para o seu sucessor será reconstruir um partido em que o centro e as classes médias possam confiar.

Para as esquerdas à esquerda do PS, Costa não deixou de ser o ministro de Guterres e o número dois de Sócrates, os líderes socialistas tão detestados. Para o eleitorado do PCP e do Bloco, o discurso radical de Costa soa a falso e não convence. O PS está assim entre dois males. O passado de Costa (e do partido no poder) semeia desconfianças à esquerda, e dificulta o voto útil. O discurso radical assusta o centro e afasta muitos eleitores da classe média. Para culminar a desorientação da campanha, Costa veio dizer que está pronto para entendimentos com o PCP e com o Bloco para viabilizar um governo do PS, mesmo que perca as eleições. Parece-me que esta afirmação só vai afastar o chamado voto útil. Se o PCP e o Bloco terão a possibilidade de influenciar o programa de um governo do PS, por que razão irão os eleitores desses dois partidos votar nos socialistas? Ao mesmo tempo, afasta ainda mais o eleitorado do centro. A primeira página do Expresso deu o mote a Passos e a Portas para a última semana de campanha: quem votar no PS, terá um governo com o PCP e com o Bloco.

Não sei quem ganhará as eleições e não confio nas sondagens. Acho que ainda está tudo em aberto, desde a vitória do PS à maioria absoluta da coligação. Mas há duas coisas que me parecem certas. Costa não chegará aos resultados de Guterres e de Sócrates. E a sua campanha tem sido muito fraca e cheia de erros. Mas não é o único culpado. A crise e a resposta europeia mostraram que a capacidade do PS de reconciliar a sua natureza de partido de poder e do centro com a sua identidade de esquerda e socialista chegou ao fim.