Em 2001, numa festa com o tema “Noites Árabes”, o filho do então primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, mascarou-se de Aladino. Ia a preceito: não só nos trajes como no disfarce da pele, escurecida com maquilhagem. Parece que ninguém viu mal nenhum nisso: Trudeau foi fotografado e a imagem publicada no yearbook da West Point Grey Academy, escola onde ensinava no início dos anos 2000.

Ninguém terá pensado mais no assunto até que esta semana a revista Time publicou a fotografia. Confrontado com o acontecido, Trudeau deu uma resposta a todos os títulos surpreendente. Desfez-se em desculpas pela sua falta de consciência à época e apressou-se a garantir que hoje nada disto teria acontecido.

Há muito que o primeiro-ministro canadiano é considerado uma espécie de herói do politicamente correto. Mas o episódio eleva este fenómeno a um outro patamar: acrescenta-lhe retroativos e é tão despropositado que se autodenuncia.

O politicamente correto é o conjunto de palavras, expressões, atos e posições ou ideias políticas vistas como discriminatórias que, pelo seu conteúdo, são sancionadas socialmente. Até aqui tudo bem. O convívio social exige uma grande dose de respeito pelas diferenças, especialmente numa sociedade livre em que a natureza humana tende a que os mais semelhantes se juntem e discriminem os mais diferentes.

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Mas nas últimas décadas, o politicamente correto deixou de ser um conjunto de regras não escritas de convivência pacífica e transformou-se numa narrativa persecutória. A tendência começou entre as próprias elites à esquerda enamoradas da ideia de universalismo. Primeiro foi aplicada a causas fraturantes – legítimas em si só – mas foi-se alargando a muitas áreas da vida política e social criando um fosso entre os que se atrevem a contestar (politicamente) o que é visto como moderno e como um direito adquirido e os restantes (politicamente corretos) mesmo que isso signifique destituir a maioria de uma opinião diferente. É nesta tradição que se insere Trudeau.

Explicam-nos vários autores – estou a lembrar-me, por exemplo, de Francis Fukuyama – que tal se deveu à orfandade da esquerda, que ficou reduzida nas causas depois do alargamento exponencial da classe média e do welfare state à maioria da população. Teve de encontrar outras formas de se evidenciar politicamente, e percebeu que os mais desfavorecidos eram as diversas minorias – de género, religiosas, étnicas e por aí adiante. Assim se construiu uma narrativa de defesa dos mais fracos que, como já foi dito acima, se foi robustecendo ao longo dos tempos.

Quando demos por nós, essa narrativa já tinha deixado ser um exercício saudável de inclusão. Já se tinha alastrado para diversos campos da nossa vida coletiva, e já prescrevia o devíamos pensar acerca dos mais diversos assuntos – desde os comportamentos que deveriam radicar em escolhas pessoais a assuntos de política nacional e internacional – em que a salutar diversidade de opiniões desapareceu para dar lugar aos que pensam de forma socialmente aceite (os bons) e dos que nem por isso (os maus).

As consequências são óbvias: a liberdade de expressão está sujeita a permanente autocensura (e à censura alheia desinformada), o debate político está viciado mesmo antes de começar (uma vez que existem uma posição vista como moralmente superior a todas as outras) e, principalmente, a ausência de contraditório socialmente aceite leva à radicalização do politicamente correto (que tolda o juízo político).

Foi exatamente o que aconteceu com Justin Trudeau. Não há absolutamente nada de errado com o seu comportamento. Um disfarce é um disfarce. Mas ao auto culpabilizar-se, o primeiro-ministro canadiano está a dar um exemplo profundamente negativo. Não só que os comportamentos têm retroativos – somos obrigados e revê-los constantemente e a culpabilizarmo-nos pelo que teve um contexto inofensivo e agora (na sua ótica) já não tem – como nos apresenta uma visão do racismo desenquadrada da realidade. Para Trudeau, a etnia (e provavelmente todas as outras diferenças) têm que ser eliminadas em vez de se promover uma saudável relação e convivência nas diferenças. É uma fantasia? Sim. Mas como qualquer outra forma de fantasia aplicada à realidade, é uma fantasia muito perigosa.

Se houvesse dúvidas quando à profunda radicalização do politicamente correto, um dos seus campeões, Justin Trudeau, esclareceu-as. Este episódio pode estar revestido de boa vontade, mas mostra-nos os riscos que corremos. Se nada mudar, estamos condenados a um pensamento cada vez mais monocromático e à incapacidade de pensar criticamente ou, pelo menos, de nos expressarmos em público. É isto, o politicamente correto 2.0. Assim, de repente, não me lembro de maior ameaça à liberdade das sociedades democráticas.