Vitória vitória, não se acabou a história. Queria eu citar corretamente o provérbio, para bom começo de conversa, mas seria uma infâmia para com a realidade. E por história, falo de muito.

A Europa que viu duas guerras destruírem quase tudo o que a constituía, e o mundo que celebrou a queda de um muro que não só dividia pessoas mas visões de sociedade, pensava ter colocado o último prego no caixão que carregaria os conflitos que mancham a história do velho continente.

O contexto era propício. A pacificação da Europa fez crer que o conflito tornar-se-ia um não assunto. Os anos 90 foram de um enorme sucesso da democracia liberal, de mão dada com o boom da globalização. Tudo levava a crer que essa se iria espalhar pelo globo, como se de uma pandemia se tratasse, para bem dos povos que se querem livres. Anos depois, contudo, sabe-se que a liberdade tem consecutivamente diminuído pelo mundo e interessa, mais do que nunca, questionar o porquê.

A priori, o que torna a democracia liberal excecional é a sua base de direitos, liberdades e garantias, segundo a premissa da tolerância perante fraturas no seio da sociedade. Esta última – quiçá – é o motivo pelo qual tanto a direita nacional-populista como a esquerda woke miram o modelo liberal de democracia, pondo em causa as elites que o protagonizam. A primeira no que toca à falta de representação dos anseios populares profundos das ‘maiorias silenciosas’, e a segunda julgando-o como objeto de perpetuação de injustiças sociais. Assim, a direita e a esquerda anti-liberal unem-se quanto a colocá-lo em cheque, ora por uma ‘democracia direta’, ora por uma ‘democracia da justiça social’ – ambas iliberais. O iliberalismo surge assim do pressuposto de que os mecanismos da democracia liberal são um entrave, ou inibidores, para certos fins sociais e políticos considerados urgentes.

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Ademais, continuam a observar-se modelos mais tradicionais de anti-liberalismo – as autocracias – na China, na Venezuela ou na Bielorrússia, para além de modelos híbridos, com um significativo défice democrático, como o húngaro e o bósnio.

Tudo o que dispus me soa urgente, perante o regresso da guerra à Europa. Sentimos o pesado deja vu de rever declarações sobre zonas de influência, expansionismos e velhos impérios, e o medo da catástrofe. Não obstante, há que destacar um paradoxal feito de Putin: uniu o ocidente como há muito não se via. Está revitalizado e junto pela proteção daquilo que mais preza: a União Europeia, a NATO, enfim, a liberdade. Parte desse processo acabou por, também, clarificar o cenário. De um lado, ficamos com os defensores da democracia liberal, de um outro, com os céticos em relação a ela – que se tocam neste ponto, dentre uma salganhada de diferentes motivações.

A história de que falo é a – tão recente e tão antiga – luta entre a liberdade e o autoritarismo; das democracias face às autocracias.

Mudam-se os tempos, mas não as vontades.

Quem sabe um dia.