Um dos prodígios do português de Portugal é artista servir para sublime e safado. Chamamos alguém de artista quando nos deu o Céu. Mas também podemos chamar alguém de artista quando, esperando dele o Céu, o que recebemos foi o pior da Terra. A ambiguidade da palavra “artista” pode tornar-nos precavidos, conscientes de que alguém no palco é uma criatura com uma finíssima película dentro de si a separar o belo do bandido. Talvez seja também este fenómeno que aproxima hoje as celebridades artísticas dos antigos santos: onde os últimos podiam passar da virtude para o vício, apostatando e abandonando a fé, os últimos podem agora passar de estrelas a escroques — continuamos fascinados pela velocidade de uma queda.

Não sei se é do meu calvinismo, mas admito que poucas coisas me fascinam tanto como um artista caído em desgraça. Todos os detalhes de um astro em processo acelerado de perda de brilho me fascinam: o embate do ensimesmamento com a realidade; a insatisfação crónica do narcisista federado; o percurso irreversível do apogeu para o apequenamento, etc. Mas no meio de todas estas pequenas engrenagens da decadência, é no momento em que o artista contempla os seus velhos triunfos transfigurarem-se em trevas presentes que o meu coração exulta. É Lúcifer, o anjo de luz, tornado Satanás; é Dorian Gray, musa masculina, tornado assassino; é DiCaprio, o espalhafatoso Rick Dalton do “Once Upon A Time In Hollywood” do Tarantino, tornado actor gago de filmes de terceira… Gosto de arte, mas ainda gosto mais quando a arte é assumida artimanha.

Suspeito que Nietzsche topava isto como poucos. Quando escreveu “Humano, Demasiado Humano”, ele apontou a mira à classe artística num capítulo chamado: “Da Alma dos Artistas e dos Escritores”. Nele, escrevia assim: “o artista sabe que a sua obra apenas obterá pleno efeito no caso de despertar a crença (…) numa miraculosa subitaneidade de produção, (…) como um meio para enganar, para predispor a alma do espectador ou do ouvinte de modo a que ele creia no brotar súbito do perfeito”. Custava ao pensador alemão, pronto para celebrar que Deus finalmente tivesse morrido naquela época, que houvesse outra metafísica, eventualmente mais pelintra ainda, a tentar entrar pela porta do cavalo.

De que adianta termos rejeitado a autoridade religiosa dos padres e pastores se os artistas, armados em arautos da estética, nos impingem uma outra fé que, não adorando Deus, adora o belo? Vamos continuar nas mãos de auto-iluminados, murmurava Nietzsche e não sem razão. Os místicos apenas mudaram de roupa mas continuam seguros das suas visões. Eu, que por eventual castigo da providência divina, convivo com pastores e padres, artistas e artesãos, não lhes noto grande diferença em assertividade sacerdotal. Os artistas manifestam até com mais veemência a confiança absoluta que têm nos grandes imperativos morais que precisam de ser transmitidos a todo o povão restante, naturalmente excluído das epifanias da classe. Já repararam que hoje, sempre que há uma causa a ser abraçada, são os artistas que nos guiam espiritualmente em espectáculos conduzidos pela limpidez do seu olhar virtuoso?

A vantagem do proverbial mau-feitio protestante é a sua desconfiança diante do bem. Condenar o mal é básico; hesitar perante bens consensuais é que, de facto, não é para todos. O calvinista zangado mais facilmente compreende o desabafo do Jack, naquela cena arrepiante do “Fight Club” do David Fincher, quando confessa que lhe apeteceu destruir algo belo. Certamente que é absurda a destruição da beleza; mas será menor a sua instituição às mãos de uma classe credenciada por ver o que tantos não conseguem? Quando alguns protestantes se livravam das obras de arte do catolicismo, não o faziam necessariamente por insensibilidade estética, mas por hiper-sensibilidade. A arte, quando vai longe demais, não deseja ser demoníaca mas divina. O mandamento hebraico impedia que se fizessem representações de Deus, não do Diabo. A maior tentação não está em devotar a nossa vida ao mafarrico, numa espiral de destruição total; a maior tentação está em tomar a representação que nos parece divinal como o próprio Deus—é nos píncaros do que criamos que podemos dar as maiores quedas.

Logo, sempre que um artista cai, um anjinho pode ganhar asas. E se é certo que a um cristão não fica bem celebrar a queda de ninguém, menos cristão será ainda a celebração de ascensões de quem não foi feito para ser adorado.

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