Há pelo menos duas gerações que a decisão de acolher os pais em casa foi tomada pela minha família. A minha avó Laurinda morreu no seu quarto, em nossa casa, e a memória dos seus últimos dias, bem como das fases em que morou connosco, ficou gravada para sempre. Uma memória indelével, tatuada no coração de todos os que a amámos e continuamos a amar. E a admirar. Teve 12 filhos e todos os que permaneciam vivos a queriam ter em suas casas, mas fomos nós que tivemos a felicidade de a ter connosco no seu derradeiro tempo de vida.

Recordo-me da noite em que se percebeu que seria a última. A avó estava quase sempre de olhos fechados, quieta e tranquila. Ficou cega muito cedo. Enterrou 4 filhos e chorou-os ao longo da sua vida, mas era uma mulher alegre e cheia de bondade, capaz de transformar as lágrimas em sorrisos que facilmente davam em risos. Era muito querida, cheia de amor e humor. Ainda hoje as suas frases nos fazem sorrir e querer ser como ela. Nessa noite, a avó Laurinda devia saber que ia morrer, mas não fez perguntas nem desperdiçou palavras. Paciente, esperou.

Esperou, primeiro, que chegassem todos os filhos. Quando o último se sentou à sua cabeceira, disse apenas:

— Também vieste, João.

De olhos fechados estendeu-lhe a mão, que ele segurou em silêncio. Pouco tempo depois a minha mãe percebeu que se agitava na cama e perguntou:

— Precisa de alguma coisa, minha mãe? O que quer?

— Quero ir para o céu.

Não voltou a abrir os olhos e foi de certeza direitinha ao céu, seja o céu onde for.

Revisito vezes sem conta o instante da sua morte e, sobretudo, a maneira como morreu, rodeada de todos os seus. Talvez porque estou cada dia mais consciente do derradeiro ciclo de vida da minha própria mãe. Ou, quem sabe, porque o meu pai morreu inesperadamente há um ano, poucos minutos depois de ter saído de nossa casa, ainda antes de chegar à esquina da rua onde morámos juntos nos últimos cinco anos. Disse que ia dar as suas voltas habituais entre a biblioteca e a Fnac, passando pela farmácia onde o conheciam pelo nome e onde parava regularmente, mesmo sem precisar, só pelo prazer de poder ficar a conversar.

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Esta farmácia do bairro pertence a uma família e, tanto a farmacêutica-mãe como a farmacêutica-filha, criaram um ambiente verdadeiramente familiar e acolhedor para as pessoas mais vulneráveis que chegam ao balcão. Umas precisam de medicamentos, outras apenas falar e ter a certeza de que são ouvidas. Certamente por cultivarem esta dupla atitude de bom atendimento e escuta activa, a farmacêutica-filha acabou por nos dizer a frase mais redentora de todas as frases amorosas e resgatadoras que ouvimos depois, no velório e funeral, quando fomos fortemente abraçados por tantos.

— O vosso pai morreu feliz.

Também volto a esta frase recorrentemente para a conferir com a realidade. Sim, o pai morreu feliz, e se até a senhora da farmácia reconhecia esta realidade é porque se notava nele. Não falo de uma felicidade de ‘velhinho contentinho’, note-se, mas da felicidade que emanava de um homem real, testado pela vida e provado pela doença, pai de filhos e avô de netos, que pôde viver em família, no seu bairro, conhecido pelos seus vizinhos e rodeado dos seus, até ao fim.

Envelhecer na comunidade e morrer em casa, ou num lugar familiar, é um verdadeiro privilégio, pois há cada vez mais idosos institucionalizados e hospitalizados. O ageing in place é, aliás, um tema muito caro à OMS – Organização Mundial de Saúde, que preconiza uma série de medidas para promover o apoio necessário para viver com segurança e de forma independente, em casa e na comunidade, à medida que se envelhece.

Mesmo sem estarem a par das orientações estratégicas da OMS, todas as pessoas mais velhas, quando interrogadas sobre “qual o lugar ideal para envelhecer?”, assumem que gostavam que fosse num lugar que conhecem bem, seja na casa onde moram, seja perto dos filhos e família. O importante é que seja um lugar onde tenham referências, rede social e apoios.

Acontece que continuar a viver em casa e na comunidade, ao longo do tempo, com segurança e autonomia, não é acessível a todos, especialmente nos países economicamente mais favorecidos, onde a opção mais ‘natural’ para os idosos que começam a perder capacidades e independência é serem institucionalizados. Em Portugal, um dos países mais envelhecidos do mundo (segundo o estudo de A. Fernandes, 2004, Revolução Demográfica, Saúde e Doença), as primeiras respostas destinadas às pessoas mais velhas começaram a surgir depois do 25 de Abril de 1974, quando as políticas se centraram nesta faixa etária e foram criados Centros de Dia e Lares de Idosos, que se multiplicaram exponencialmente desde então.

“O Lar de Idosos tornou-se um ícone das respostas sociais para a velhice, surgindo mesmo associado a um sinal de desenvolvimento social por desse modo se atender às necessidades dos mais velhos através de um serviço permanente de prestação de cuidados (…) é verdade que o Lar de Idosos constitui actualmente uma resposta imprescindível em situações de extrema vulnerabilidade, mas também é verdade que a entrada num Lar de Idosos provoca sempre uma ruptura com o quadro de vida anterior da pessoa e quase sempre com a comunidade a que ela pertencia”

Cito o Guia de Boas Práticas, coordenado por António M. Fonseca, Psicólogo doutorado em Ciências Biomédicas, especialista em Psicologia do Envelhecimento, Professor universitário e coordenador do Mestrado de Gerontologia Social Aplicada, na Universidade Católica Portuguesa (UCP).

Este projecto de investigação foi realizado entre Setembro de 2017 e Maio de 2018, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) e a UCP, e é lançado hoje e amanhã em debates públicos, de entrada livre, promovidos pela FCG. Esta tarde será no Porto e amanhã, também de tarde, em Lisboa, mas a publicação integral fica online no site da Gulbenkian, disponível para todos os que a quiserem consultar e, quem sabe, replicar os projectos mais inspiradores.

Se o ageing in place significa a capacidade de continuar a viver em casa e na comunidade ao longo do tempo, com segurança e de forma independente, como fica dito e está bem explícito neste estudo hiper actual, acabadinho de publicar, então há que promover novas políticas e fazer uma abordagem interdisciplinar, para que este ageing in placeseja possível como primeira opção. Ou seja para que se percebam as vantagens de inclusão social e de recompensa emocional que traz associados.

“O lugar onde a pessoa vive não é apenas a sua casa, também é a comunidade onde essa casa se insere. A organização do espaço, o tipo de edifícios, a rede de transportes, a disponibilidade de serviços da zona envolvente à habitação, tudo isso são variáveis que contribuem para um envelhecimento verdadeiramente participativo ou, pelo contrário, para um envelhecimento socialmente excluído. Manter uma vida autodeterminada e tão aproximada quanto possível à que se teve durante décadas, só será viável, à medida que se envelhece, se o ambiente construído e o ambiente natural estiverem preparados para respeitarem a evolução das capacidades individuais e, com isso, preservarem a confiança e a autoestima individuais”.

António Fonseca assume, neste seu contagiante Guia de Boas Práticas, que em vez de ser um problema, o envelhecimento da população “constitui um feliz ponto de chegada do desenvolvimento humano”. Gosto particularmente da visão feliz, pois a abertura a esta nova idade que são os muito mais velhos é um avanço civilizacional. Na recente reclassificação que a OMS fez das idades, a meia idade passou a estar entre os 66 e os 79 anos (somos jovens até aos 65, viva!) e só passamos a idosos aos 80 anos. Nesta lógica, esta cartografia de boas práticas devia ser um livro de cabeceira para todos os que vamos avançando no tempo, sabendo que Old is The New Young, como professa a Susana António, fundadora de vários projectos que recriam esta nova idade. Estou a pensar concretamente no genial atelier A Avó Veio Trabalhar, onde a designer Susana António trabalha apenas com estes novos-velhos-novos.

Voltando à minha avó Laurinda, ao meu pai e à minha mãe, que são os exemplos que melhor conheço, fico contente e sinto-me infinitamente grata por haver estudos científicos que validam a prática familiar (nossa e, felizmente, de muitas outras famílias!). A casa, a proximidade de filhos e netos, dos vizinhos e conhecidos, o bairro, as ruas, a facilidade de usar os transportes públicos, as lojas e serviços – seja a biblioteca municipal, mesmo ao lado de casa, seja a Fnac, onde o meu pai também parava quase todos os dias para ver as novidades e se sentar a ler um par de horas, ou seja a farmácia que visitava mesmo quando não precisava de aviar receitas, seja ainda o barbeiro, a mercearia da esquina, o centro de saúde e a familiaridade com que era tratado pela médica de família – na verdade toda esta rede lhe permitiu (e continua a permitir à minha mãe) envelhecer no seu elemento, em circunstâncias que se vão adaptando às alterações que a progressiva perda de faculdades exige.

Envelhecer onde sempre se viveu só pode ser negativo quando as comunidades sofrem mudanças que as desfiguram, sublinha o estudo em referência. Só quando estes lugares de sempre deixam de ser acolhedores e se tornam invivíveis, agressivos e inseguros, deixando as pessoas mais velhas com a sensação de estarem ‘fora do seu lugar’. Aí sim, há que encontrar um novo contexto que as proteja e vá ao encontro das suas necessidades e sensibilidades.

Termino com mais uma citação do feliz estudo que levou à publicação e divulgação deste Guia de Boas Práticas de ageing in place, “conceito absolutamente contemporâneo, motivado pela responsabilidade social em proteger os idosos, principalmente os mais vulneráveis, que reflete uma mudança de paradigma nas políticas sociais de apoio aos idosos, ao considerar prioritária a vontade da pessoa idosa em permanecer no seu ambiente familiar o maior tempo possível, de modo independente, com saúde e beneficiando de apoio social”.

Porque a minha realidade diária, e o testemunho dos que tenho em casa e à minha volta, é de pessoas para quem envelhecer não é sinónimo de inactividade, apatia e “ver o tempo passar”, atitude tão comum em tantas instituições, partilho a minha experiência familiar e revelo algumas das minhas memórias-guia. Para que outros se deixem contagiar, no sentido de reforçarem a proximidade familiar ou, até, para perderem o medo de acolher em casa os pais quando eles ficam mesmo vulneráveis. Tê-los à nossa guarda, velar pelo seu sono, cuidar da sua saúde e bem estar, acompanhá-los às consultas e tratamentos, viver com eles novas experiências e recordar velhas memórias é uma benção. Claro que também exige sacrifícios, paciência e aceitação mútuas, muito amor e dedicação, mas é uma vida adorável. E é um seguro de pacificação interior, a partir do momento em que morrem. Falo por mim, claro. E, por mim, ninguém envelhecia fora de casa!

PS: Importa sublinhar que curiosamente o ageing in place é a realidade mais frequente nas famílias mais carenciadas. Não por opção, mas por necessidade, dadas as limitações dos sistemas de segurança social e os custos cada vez mais elevados dos lares.