O argumento dos professores parece imbatível: se aos outros trabalhadores da administração pública vai ser contado todo o tempo de serviço para efeitos de evolução na carreira, porque haverão os professores de ficar de fora? Mais exactamente, porque ficam de fora “nove anos, quatro meses e dois dias de tempo de serviço”, como dizem os sindicatos, contabilizando os períodos entre agosto de 2005 e dezembro de 2007 e entre 2011 e 2017?

Visto desta perspectiva a lógica sindical parece imbatível e a irritação dos professores uma maré imparável. Mas temos de ter também a perspectiva do contribuinte (serão mais 650 milhões de euros em salários de funcionários públicos), tal como não podemos perder a perspectiva de todos os que, não sendo trabalhadores do Estado, não beneficiam deste inominável princípio em que “a antiguidade é um posto”. No mundo real, aquele que fica fora do ambiente protegido em que vivem os professores e os outros funcionários públicos, não é assim. Nunca poderia ser assim. Sobretudo é cada vez menos assim.

É esta perspectiva que me interessa, pois é ela que interessa à maioria dos portugueses que pagam impostos e não sabem o que é isso de “promoções automáticas”. Pelo contrário: conhecem bem o mundo em que os empregos não são para a vida, em que as passagens pelo desemprego quase sempre se traduzem na aceitação de empregos com uma menor remuneração, o mundo em que muitas vezes se negoceiam reduções salariais e não promoções “porque sim”.

Esta greve dos professores teve o mérito de nos recordar como é diferente a “bolha” em que vivem aqueles para quem este Executivo tem governado – as corporações que vivem do Estado ou à sombra do Estado – e a dura realidade dos que têm que fazer pela vida e pela criação de riqueza.

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Ficámos a saber, ou foi-nos recordado, que a carreira dos professores é “horizontal” – o que significa que não têm de ascender a postos com mais responsabilidade para progredirem na dita “carreira” – e que a sua evolução depende apenas de três factores: anos de serviço (têm a possibilidade de passar de escalão de quatro em quatro anos, ficando de fora apenas os dois escalões mais elevados); uma avaliação de “Bom”; e terem participado em acções de formação. Como não custa nada participar em acções de formação (mesmo quando estas são algo bizarras, como a formação em percursos pedestres ou em técnicas criativas de reciclagem, para só dar dois exemplos colhidos ao acaso) e o sistema de avaliação de professores foi reduzido à expressão mínima, não havendo limites para aqueles que recebem a classificação “Bom” (só há quotas e reais exigências de qualidade para o “Muito Bom” e o “Excelente”), a verdade é que tudo isto se traduz num sistema de progressão quase automática. Não há provas que tenham de ser prestadas, não há intervenção das famílias, não há sequer medição do progresso dos alunos que possa ser relacionada com a qualidade (ou falta dela) dos docentes.

Neste ponto há diferenças para o resto da administração pública onde a “progressão automática”, sem esforço, só pode ocorrer, na melhor das hipóteses, de dez em dez anos. Fora desse automatismo funciona o mérito, mas o mérito é algo que os professores sempre se opuseram a medir.

Mas a verdade é ainda mais dura: em nenhuma parte da administração pública deveria ser possível haver promoções automáticas por antiguidade. No caso dos professores isso é ainda mais gritante, e por isso me choca ver como alguns se limitam a fazer as contas aos anos de serviço para reivindicar a subida de um ou mais escalões. Tal como me choca ouvir Mário Nogueira referir a “indiscutível qualidade dos professores portugueses”, associando-a à evolução muito positiva dos nossos jovens nos rankings internacionais que medem as suas aptidões a Matemática ou no uso da língua materna, quando sabemos que esse progresso se deve sobretudo a reformas que foram sendo introduzidas por sucessivos governos sempre contra a vontade da Fenprof (reformas que, infelizmente, o actual governo tem parcialmente revertido, mesmo as que foram introduzidas por governos socialistas).

Mas para avaliarmos o que pedem os professores é bom começar por ter noção do que se passou durante os difíceis anos da crise fora do ambiente protegido da Administração Pública. Assim como é bom ter a noção de que nenhuma empresa sobreviveria no mundo moderno se o seu princípio de gestão dos recursos humanos fosse o de que “a antiguidade é um posto”. O princípio que se procura prosseguir é o do mérito — não estou a dizer que é assim em todas as empresas –, progredindo os melhores, por vezes até muito rapidamente, ao mesmo tempo que os funcionários que não mostram qualidades ou estagnam nas carreiras ou acabam mesmo dispensados.

Nos anos da crise este ajustamento foi muito mais brutal, e realizado por via de passagens pelo desemprego, que chegou a níveis elevadíssimos. Este drama em nada é comparável à “estagnação” nas carreiras da função pública. Mais: como já referi, o regresso ao mercado de trabalho tem implicado para muitos trabalhadores do sector privado aceitarem piores condições remuneratórias do que as que tinham antes. Pior: muitas vezes fazem-no em situação de precariedade e perdendo todos os direitos de antiguidade, não apenas os dos chorados nove anos e qualquer coisa dos professores.

Perguntar-se-á: mas agora que o país está de novo a criar emprego essa situação não se inverteu? Não, porventura até está a acontecer o contrário. Uma análise detalhada dos dados mais recentes do INE sobre o emprego indica mesmo que a maior parte do emprego que está a ser criado é pouco qualificado e mal remunerado, um diagnóstico que é também feito pela Comissão Europeia. Basta pensar que, dos quase 250 mil postos de trabalho criados desde o final de 2015, dois terços (mais exactamente 64%) foram-no nas categorias profissionais associadas a menos qualificações e salários mais baixos.

Acontecendo isto numa altura em que a qualificação de quem está a chegar ao mercado de trabalho é mais elevada, esta distorção só pode ser explicada por muitos trabalhadores estarem a aceitar empregos que não requerem as qualificações que possuem, o que não é estranho se pensarmos que o turismo, em particular a hotelaria e a restauração, é responsável pela criação de quatro em cada dez novos postos de trabalho. E uma fatia também muito significativa dos restantes empregos está a surgir na indústria transformadora, graças ao crescimento das exportações. Mais: o emprego que está a ser criado tem uma produtividade abaixo da média, precisamente por ser em trabalhos pouco diferenciados, como assinalou o Fórum para a Competitividade.

Mas porque fiz este tão longo desvio se estamos é a falar de professores? Para sublinhar que a sua situação é, por comparação com a dos trabalhadores do sector privado, melhor tanto no que se refere à segurança no emprego, quer no que se refere à evolução das suas remunerações nos últimos anos.

Mais: ainda antes de este Governo ter procedido à “devolução de rendimentos” de que uma das classes que mais beneficiou foi a dos professores (por uma fatia significativa auferir mais de 1500 euros brutos por mês, a fasquia a que se situavam os cortes), já os salários dos professores eram, em média, cerca de 25% mais elevados do que os dos trabalhadores com o mesmo tipo de formação e experiência.

Esta é uma realidade pouco conhecida mas que resulta bem clara da leitura do mais recente relatório da OCDE, Education at a Glance, de 2017. É dele o quadro que reproduzo abaixo onde verificamos que em 2015 – sim, 2015, ainda no tempo do anterior Governo – já os professores portugueses do secundário eram os que melhor comparavam com os trabalhadores do sector privado em toda a OCDE.

Esta situação poderia justificar-se se os nossos professores fossem os melhores entre os melhores, mas, existindo profissionais excepcionais, a verdade é que há décadas que a profissão de professor do ensino básico e secundário não atrai os melhores alunos, pelo contrário. Como Alexandre Homem Cristo notou, num texto corajoso, a dura realidade é que, mesmo havendo notáveis mestres, “em termos gerais, quem quer ser professor são os piores alunos, os mais pobres e os menos cultos”. Porquê? Em parte porque a profissão perdeu prestígio, em parte porque muitos percebem, ao longo do seu percurso escolar e universitário, que não têm condições para progredir no muito mais competitivo mercado de emprego privado ou, então, para seguirem uma carreira académica ou de investigação.

Volto assim ao meu ponto de partida: os professores não têm razão porque nunca deveria existir um sistema de progressão na carreira com tantos automatismos e tão pouca atenção ao mérito; os professores também não têm razão porque, quando comparamos a segurança no emprego e os salários que já auferem, beneficiam de uma situação mais favorável do que as dos trabalhadores do sector privado com o mesmo nível de formação e experiência.

Os professores só têm razão num ponto: o Governo está a tratá-los de forma diferente da maioria dos restantes funcionários públicos, para quem descongelou as carreiras. Mas isso é a camisa de onze varas onde António Costa se meteu nas suas negociações com os parceiros da geringonça, isso é a dor de cabeça do PS, que já percebeu que tem pela frente um grau de irritação da classe docente comparável ao do tempo de Maria de Lurdes Rodrigues.

Contudo, como Costa e o PS já só pensam nas eleições e na pacificação das corporações, suspeito que a factura acabará por sobrar para os do costume, isto é, para os contribuintes que, mais ano, menos ano, lá terão de suportar mais 650 milhões de despesa pública apenas porque “a antiguidade é um posto”. Além de que é dessa verdadeira iniquidade que não nos livraremos tão depressa.