As eleições na Alemanha deviam estar a agitar as primeiras páginas. Não só porque a Alemanha é o maior Estado da União Europeia, mas porque quase todas as votações em países grandes foram, nos últimos anos, causa de comoção mediática. Desde 2015, tivemos o referendo no Reino; Donald Trump nos EUA; o Podemos e os Ciudadanos em Espanha; Marine Le Pen e Emmanuel Macron em França. Se bem se lembram, era suposto estarmos a assistir à revolta geral dos “descontentes da globalização”.

Mas eis que chegamos à Alemanha, e é outro planeta. Onde estão os Trumps, os Macron? Toda a gente espera mais quatro anos para Angela Merkel, e talvez mais uma “grande coligação” dos partidos do regime (CDU-CSU e SPD). É verdade: existe a Alternativa para a Alemanha (AfD). Mas está a disputar o terceiro lugar.

Angela Merkel, líder da CDU desde o ano 2000 e chefe de governo desde 2005, atravessou a crise bancária (2008), a crise do Euro (2010), e a crise dos refugiados (2015). Entretanto, a França teve quatro presidentes, dois dos quais não reeleitos. Num mundo de partidos desavindos, os grandes partidos alemães vivem em coligação. Qual o segredo desta estabilidade e consenso?

Dir-me-ão: é a quarta maior economia do mundo, e, ao contrário da França, fez reformas para ser competitiva. O desemprego alemão é um terço do francês. Mas os Estados Unidos são uma economia ainda maior e têm um desemprego tão baixo, e não foi por isso que Republicanos e Democratas conseguiram resistir a Trump. O segredo é Merkel, maternal e ideologicamente ambígua? No Reino Unido, Theresa May também quis ser maternal e ideologicamente ambígua, e não correu bem.

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A Alemanha não tem problemas? Tem. Compensar a retracção demográfica através das migrações é arriscado. Os juros baixos do Euro depreciam a elevada poupança alemã. Se a AfD estivesse a competir por um lugar mais acima no pódio, não haveria dificuldade em explicar porquê.

O segredo alemão não é não ter problemas, mas limitar a sua discussão. Na campanha eleitoral, nem Angela Merkel nem o seu rival Martin Schulz propuseram grandes opções. A cultura política alemã, e não apenas a prosperidade actual, permite-lhes esta evasão. O sistema federal, os tribunais e as instituições autónomas fazem da Alemanha um dos países europeus onde o poder está mais disperso e condicionado (o governo central é responsável por menos de um quarto da despesa pública). As patologias do passado germânico servem para estigmatizar alternativas e fomentar consensos. Não por acaso, a opinião pública alemã é a mais “centrista” da Europa. É um país onde as coisas se vão resolvendo.

A austeridade no sul da Europa pôs muita gente a disparatar sobre um novo império alemão, supostamente consumado através da UE ou do Euro. Agora, a imprensa europeia não se cansa de confiar missões de reforma doméstica e continental a Merkel, entretanto lavada do pecado da austeridade pelo acolhimento à imigração. É despropositado. A chave para perceber a elite política alemã está na sua visão pouco entusiasmada do futuro. Merkel não espera muito de uma Alemanha (e de uma Europa) sem a população jovem dos países emergentes nem a capacidade de inovação tecnológica dos EUA. Por isso, não é fácil imaginar um Macron alemão, com vontade de enfrentar Trump, endireitar o mundo, reformar a UE, mudar o país. A Alemanha de Merkel tem estratégias, mas dispensa lideranças. A sua despesa militar, em relação ao PIB, é inferior à da Itália e é metade do que a NATO recomenda: prefere a boleia americana, mesmo com dúvidas sobre Trump. Apesar do seu peso e da sua força, a Alemanha é uma espécie de Suíça em ponto grande. Servirá sempre mais àqueles que precisam de um fantasma do que aos que dela esperem decisão e orientação.