Há uma coisa que toda a gente percebe: quando o PCP, em vez de condenar a Rússia, condena genericamente a “guerra”, está a alinhar com a Rússia, porque numa guerra em que há um agressor, tudo o que seja fingir imparcialidade, não é prudência, mas apoio a quem começou a guerra. Mas há outra coisa que nem toda a gente percebe: porque é que o PCP se expõe a tanta abjecção por causa da Rússia? No tempo da União Soviética, ainda se percebia: era o clubismo comunista. Mas Putin não é comunista. “Continuo a não perceber”, confessava ontem a ministra Ana Catarina Mendes.

Mas nem é necessário suspeitar de dependências secretas da Rússia para perceber o PCP. Basta ter em conta o que o PCP quer ser. O PCP quer ser um partido que ocupa posições e tem poder nesta democracia: quer ter deputados, câmaras municipais, sindicatos, etc. Mas o PCP não quer reconhecer que os fundamentos da actual democracia — o pluralismo partidário, o Estado de direito ou a economia de mercado — têm tanto valor em si próprios, que nenhum objectivo político é válido se os colocar em causa. Para o PCP, o “comunismo” está acima do pluralismo partidário, do Estado de direito e, claro, da economia de mercado. O PCP é, como Álvaro Cunhal fazia questão de lembrar, “um partido revolucionário”: um partido que disputa eleições legalmente, mas cuja razão de ser é a revolução, isto é, a destruição do “capitalismo”. O PCP sabe que não está próximo desse dia. Mas nem por isso quer deixar de ser revolucionário. Putin, seja qual for a sua filosofia, contesta a ordem mundial que impede revoluções como as que o PCP deseja. Estar com Putin, que não é comunista, pode parecer contraditório. Mas estar contra Putin seria estar com quem não deixa a revolução comunista acontecer, e isso seria ainda mais contraditório.

Não é um suicídio? Não necessariamente. O PCP perdeu, entre as eleições de 2015 e de 2022, metade do seu eleitorado. Há quem argumente que perdeu votos por ter deixado de sustentar o governo socialista. Mas a maior queda eleitoral ocorreu entre 2015 e 2019, enquanto foi fiel ao PS. É provável que os comunistas acreditem que o afastamento dos seus eleitores tenha sido causado, não pela retirada de apoio ao PS, mas pelo apoio ao PS, na medida em que terá identificado o PCP com causas que os socialistas podem representar de um modo mais efectivo, tornando o PCP dispensável. Estar com a Rússia, quando os outros partidos parecem estar com a Ucrânia, é mostrar que há coisas de que só o PCP é capaz. Dir-me-ão: sim, mas são coisas que tornam o PCP inelegível. Têm a certeza? Na primeira volta das presidenciais francesas, Le Pen, Mélenchon e Zemmour, todos com um passado de aplauso a Putin, reuniram 52,3% dos votos. O fundo de revolta e de iconoclastia que, no Ocidente, suscita votos contra o “sistema”, não está exausto. É óbvio que o PCP calcula que vale a pena sujeitar-se às invectivas gerais para explorar esse fundo. Há gente escandalizada com isso? Mas essa gente votaria PCP se, por acaso, o PCP excomungasse Putin?

Para perceber os comunistas, há finalmente este aspecto a considerar: a quantidade de gente que pergunta: como é possível o PCP agarrar-se ao ditador Putin? Ana Catarina Mendes confessa-se “absolutamente perplexa”. Mas a perplexidade que neste caso faz sentido é outra: como é possível alguém ainda esperar que o PCP optasse, em qualquer conflito, pelo lado onde está o “imperialismo americano”? Como é possível que, perante a fidelidade do PCP à memória da ditadura soviética e às ditaduras de Cuba ou da Coreia do Norte, ainda haja pessoas que acreditem que a decência impediria o PCP de condenar a NATO em vez de Putin? O PCP pode ser o que é porque demasiada gente tem interesse em não ver o que o PCP é. Essa impunidade alimenta a sua ousadia: por mais que pactue com Putin, sabe que nunca será demonizado como o Chega, que até condenou o ditador russo.  Em 1975, Mário Soares resistiu à instalação de um regime militar sob influência comunista. Mas entre 2015 e 2021, o PS governou arrimado ao PCP. Conveio então dizer que era um partido como os outros. Não era nem é. E quem quis perceber isso não precisou da guerra da Ucrânia. Aos que não quiseram perceber é que talvez dê jeito agora fazer de perplexos.

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