Como toda a gente sabe, José Sócrates decidiu, para absoluto desespero da língua portuguesa e do bom gosto literário, dedicar o muito tempo livre que tem desde que começou a Operação Marquês a escrever artigos de opinião em jornais. Este fim de semana, de forma tristemente previsível, publicou mais um texto a defender o seu antigo ministro da Economia, Manuel Pinho (que, de resto, bem precisa que o defendam).

Trata-se de uma espécie de roman à clef, como aliás seria de esperar de um dos mais distintos e reputados alunos de sempre da universidade parisiense de Science Po. No críptico texto publicado no Expresso, não há um único nome, apenas referências enigmáticas: Manuel Pinho é, apropriadamente, “um cidadão”; Rui Rio é, generosamente, “um líder político”; e Carlos César é, tristemente, apenas “um líder parlamentar”. A linguagem do artigo é própria de um furioso adepto de teorias da conspiração, com expressões iradas como “traiçoeiramente”, “deslealdade” ou “esgar de rejeição”.

Mas o mais relevante (apesar de todas estas maravilhas estilísticas) não é a forma — é a substância. Desde que as autoridades se passaram a interessar pelo seu curioso estilo de vida, José Sócrates sofreu uma epifania. Durante os seis anos em que foi primeiro-ministro, modificou as leis penais com a mais absoluta inconsciência; mas, logo que se tornou arguido, percebeu que, afinal, o Estado português é um terrível opressor de cidadãos honestos, que o Ministério Público se assemelha a uma polícia política que persegue os adversários do poder instituído e que os juízes são meros lacaios de um sistema totalitário.

Depois, claro, na sua cabeça há os cúmplices desta terrível maquinação. Os jornais, por exemplo, são simples instrumentos do Ministério Público, que assim “dirige traiçoeiramente imputações contra cidadãos sem ninguém lhes exigir que provem imediatamente o que afirmam”. E os deputados, esses, tornam-se “porta-vozes, não do povo que representam, mas das autoridades judiciais que, através dos jornais [cá estão eles outra vez], lhes sugerem as perguntas que elas próprias não puderam ou não quiseram fazer”.

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Manuel Pinho terá sido a mais recente vítima deste sufocante mecanismo. Trata-se, coitado, de “um cidadão que reclama o direito a defender-se apenas depois de conhecer a acusação”. Já antes desta desoladora pressão sobre Pinho, o antigo primeiro-ministro tinha criticado o regime de prisão preventiva e de prisão domiciliária, a utilização de escutas telefónicas e, de forma genérica mas implacável, todos os malévolos métodos de investigação do Ministério Público.

Uma pessoa ouve José Sócrates a falar sobre si próprio e sobre Manuel Pinho e fica apenas com uma pequena, insignificante, irrelevante dúvida: porque é que este extraordinário ex-primeiro-ministro só se preocupa com a investigação aos crimes que usam colarinho branco?

Não se percebe esta estranha selectividade. Qual a misteriosa razão para José Sócrates não escrever um artigo (ou dois) a defender os suspeitos das agressões da academia do Sporting em Alcochete? O ex-líder da Juve Leo, para dar apenas um exemplo, agradeceria seguramente a solidariedade do antigo líder do PS. Ainda por cima, este adepto sportinguista foi detido de madrugada (que escândalo!) porque as autoridades usaram os poderes que lhe são conferidos por supostamente estar em causa um crime de terrorismo (que abuso!) e — detalhe final — os jornalistas da CMTV (que malandros!) acompanharam em direto as buscas e a detenção.

Outro caso que deveria merecer a firme denúncia de José Sócrates é aquele que envolve os Hells Angels. Com os seus nomes espalhados pelos jornais (terão sido soprados por quem?), os arguidos foram alvo de uma impiedosa investigação. O Ministério Público recorreu a escutas e a filmagens ocultas, naquilo que o ex-primeiro-ministro só pode considerar um abuso dos seus “direitos individuais e da Constituição da República”, tendo em conta o que afirmou, no seu tom exaltado de sempre, sobre as intercepções telefónicas e sobre as filmagens dos interrogatórios a suspeitos na Operação Marquês .

No fundo, se o ex-primeiro-ministro pensar bem, não há diferença: José Sócrates e motards, Manuel Pinho e membros de claques. É tudo a mesma luta. De que é que está à espera?