Às vezes, eu acho que vivemos “às avessas”. Há umas semanas, tudo parecia positivo. Tudo parecia optimista. E tudo parecia feliz. Mas todos nos perguntávamos, por exemplo, porque é tantas pessoas a quem abríamos as portas — e, delicadamente, deixávamos passar — nos ignoravam. Não só não nos agradeciam, como nem, sequer, esboçavam um sorriso (tímido, que fosse). Agora, tornámo-nos comprometidos com o bem comum. Somos cuidadosos e solidários. E, seguramente, mais próximos uns dos outros do que teremos sido, desde há muitos. Dantes, muitos de nós eram indiferentes e distantes. Agora, estamos perto e somos empáticos; mas assumimo-nos em “distanciamento” ou em “isolamento social”. Às vezes, o lugar dos outros na nossa vida nem sempre assume, com clareza, a importância que ele merece ter.

O lugar dos outros é, desde sempre, “a matriz” que nos leva a ser como somos. É por isso que, sendo todos sensíveis, inteligentes e intuitivos, tudo o que de frágil há em nós nunca é bem uma espécie de “defeito de fabrico”. Surge da forma como nem sempre os nossos pais não nos deram só o melhor de si como acabaram por nos condicionar (muito mais do que que  desejariam). Com a sua relação, com aquilo que nos levavam a sentir e com os seus medos ou com os seus olhares: ora vagos, ora quase intrigantes, ora zangados e hostis ou, mesmo, intimidantes. E, acresce e aprofunda-se com todas as outras pessoas que entram na nossa vida. E, depois, com a experiência; que nos traz muitas mais coisas que nos “formatam”. E há sempre os momentos que nos “atropelam” e que nos “marcam”. E as vezes em que queremos ser capazes de falar daquilo que o nosso coração nos faz sentir mas em que quase tudo se entaramela em nós e faz com que as palavras não “saiam”. E há, ainda, os desamparos. Muitos deles porque acabamos por ser todos “pequeninos” e somos levados a imaginar que, sem ser preciso que falemos, quem gosta de nós nos adivinha e nos protege. E os amores, claro. E os “desamores”. E os nossos desastres (que se transformam numa espécie de “ficheiros secretos”). E algumas memórias que, de tanto as “varrermos” para baixo do tapete, quisemos que fossem, unicamente, um esquecimento. Somos todos, inequivocamente, saudáveis. Mas temos, uns mais do que outros, “as nossas coisas”. Tudo isso nos torna únicos e irrepetíveis; é verdade que sim. Mas também nos dá um “pacote” de “cicatrizes” que faz com que sejamos, por vezes, um bocadinho mais “doentes” do que todos desejaríamos.

É claro que, para além do mais, somos, hoje, muitíssimo mais escolarizados. E, portanto, já não transformamos em demónios partes do nosso pensamento que funcionam como “forças de bloqueio” em relação a tudo aquilo que são as nossas qualidades. E também já não faz sentido falarmos de algumas das nossas características “assim-assim” como “feitio”. Digamos que os nossos “traços da personalidade” acabam por caracterizar a forma como a vida nos “formata”. Ou como nos enviesa, nalgumas vezes. A ideia – querida para os psicanalistas – que todos acabamos por ser “desconhecidos de nós próprios” não é tão tola assim. Sintetiza a clivagem que não deixamos de sentir entre o “lado bom e bonito” das nossas qualidades e o “lado feio” dos nossos “defeitos” (das memórias que queríamos ver transformadas em esquecimento, dos tais “ficheiros secretos” e de muitos aspectos das nossas identificações que acabam por condicionar tudo aquilo que valemos).

Mas nós somos inteligentes! E, por isso, de forma hábil, aprendemos a fazer ziguezagues diante de muitas das “nossas coisas” que se foram transformando em obstáculos. Regra geral, das coisas que sentimos, das nossas inseguranças, da nossa tristeza, etc. Quer pela forma como as racionalizamos e somos quem não somos. Quer pelo modo como compomos uma imagem e nos “puxamos” “para cima”. Ou pela jeito como evitamos isto e aquilo e fazemos com que a nossa vida seja uma espécie de gincana de “faz-de-conta”, que nos condiciona mas que acaba por nos proteger. Uns de nós escondem a sua fragilidade empolando a “auto-estima”. Outros, a sua insegurança, com níveis insaciáveis de exigência. Outros, a sua desconfiança, desconfiando. Etc. A verdade é que seríamos pessoas muitos melhores se conseguíssemos ser mais verdadeiros. Mas, às vezes, vivemos depressa demais. E, por mais que pensemos 24 horas por dia, parecemos não ter tempo para pensar. E, depois, temos uma agenda amorosa, uma agenda de pais, uma agenda familiar, e mais outra, e mais outra e tantas agendas que se atrapalham tanto umas às outras que é fácil acabarmos a descobrir que não só a nossa vida não “tem a nossa cara” como, muitas vezes, não somos “donos” de nós mesmos. Em muitos momentos, estamos tão carcomidos de compromissos ingeríveis que nos aprimoramos a fazer de “avestruz”. Às vezes, a relação amorosa a que chegámos nem sempre nos ajuda a ser mais transparentes; e acentua, até, muitos dos “defeitos” que tínhamos; e acrescenta-lhe outros. Ou seja, vivemos mais “esgotados” do que parece. Daí que quase respiramos de alívio quando alguém fala de burnout, a propósito do modo o trabalho nos delapida recursos quando, na verdade, sem esse “esgotamento” não teríamos as desculpas convenientes para dizermos um “Estou cansado de mim!” que escapa à curiosidade dos outros. Somos todos, portanto, um bocadinho “falsos”. As identificações aos nossos pais, o “pacote” das coisas que vivemos e, até, uma educação com muitos aspectos judaico-cristãos, ajudaram-nos a pôr “legendas” desencontradas daquilo que sentimos. E ajudam a reprimirmo-nos. E a afastar dos outros as nossas “verdades”. E é por isso que, quando estamos tristes, por exemplo – e mais as nossas “defesas” se “encolhem” – mais nos tornamos transparentes. E mais esclarecidos. E mais bonitos, até. Desde que a tristeza que nos “invade” não seja excessiva.

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É claro que há períodos da nossa vida — um divórcio, a morte de alguém importante, conflitos laborais, tensões familiares, etc. — que dão um “empurrãozinho” às coisas que tínhamos mais ou menos “desarrumadas”, dentro de nós. E, em vez de nos ajudarem a fazer uma espécie de “upgrade” em relação aquilo que somos, põem mais a nu os tais “traços da personalidade”. E, pior, misturam neles ansiedade e depressão e transformam-se em “perturbações da personalidade”. Que é uma forma de irmos falando de “partes doentes” de nós que parecem não se traduzir nos clássicos quadros da doença mental. Mas eles “estão lá”. Escapam, muitas vezes, à vista, até, de muitas das pessoas que trabalham connosco. Mas ficam a nu nas relações amorosas. Na sexualidade. Ou nos nossos desempenhos de pais, por exemplo. Por outras palavras, acabamos por guardar “o pior” de nós para as pessoas que representam o melhor de nós. Fazemos todos assim…

É por isso que se, num primeiro momento, o coronavírus nos tornou mais solidários, mais comoventes e pessoas melhores, mais duas ou mais três semanas de estado de emergência e de confinamento — com muitos de nós a trabalhar, a conviver, a educar e a ensinar nos mesmos 20 metros quadrados de uma sala, a todas as horas — nos levarão a que fiquemos mais inflamáveis, mais “abatidos”, mais “irracionais” e mais impulsivos. E termos a escola a querer-nos fazer de professores não irá ajudar. E o “coronavírus da economia” a insinuar-se mais pode acentuar a nossa preocupação. E tudo isto a multiplicar-se naquilo que já estava “fora de sítio” dentro de nós, vai fazer com que “as nossas coisas” que pareciam ser “só” traços da personalidade subam mais um degrau na sua “desarrumação” e se transformem em perturbações da personalidade. Ou mais outro, ainda, e se transformem em doença mental. Sobretudo quando este “terramoto” que estamos a viver começar a passar e nos deixar “respirar”; e chegar a altura de fazermos contas aos “estragos”. Vamos todos ficar um bocadinhos mais “descompensados”? Provavelmente. Para muitos de nós, isso não nos fará desmoronar. Porque passa a valer aquilo que temos de mais estruturado e mais saudável. Para muitos outros, não. Tudo o que parecia “controlado” corre o risco de os “atropelar”. E serão essas, muitas dessas, as pessoas que “com o vírus” virão a tornar-se — agora, mais abertamente — doentes mentais.

É verdade que há dois pequenos pormenores que, para além do mais, parecem complicar o nosso crescimento, nestas alturas. Todos nós queremos mudar e promover transformações. E isso é bom. Mas, de preferência (somos assim…) temos sempre uma secreta esperança de mudar quase tudo sem mexer em quase nada. E, sobretudo, que essas mudanças, de tão urgentes, sejam… “para ontem”. Apesar disso, e sem qualquer “pó de arroz”, temos todos mais “reservas” de saúde mental do que pode parecer. Por exemplo, quando somos “obrigados” a crescer, acabamos a concluir que parece haver “males que vêm por bem”. Que é uma forma de falarmos da surpresa de encontrarmos recursos onde parecia existir, sobretudo, “doença”. Na verdade, só adoecemos quando evitamos pensar. Mesmo que, às vezes, o mais que se ouve falar por aí a propósito do pensamento passe pelo “controle”: controlar as emoções; controlar o pensamento; controlar a tristeza; controlar, controlar, controlar! A verdade é que quanto mais audazes nos tornamos para pensar mais saudáveis acabamos por ser. Por isso mesmo, uma pandemia pode muito bem “obrigar-nos” a pensar a vida que temos, a pensar a forma como vivemos algumas relações ou a pensar o formato (tantas vezes, “tóxico”) da nossa relação com o trabalho. E, em vez de imaginarmos uma “epidemia” de doença mental, depois da pandemia, talvez estas semanas de confinamento nos ajudem a eleger transformações que, neste entretanto, se tenham assumido indispensáveis. Talvez nos levem a encontrar quem nos ajude a ser mais “verdadeiros”, mais determinados e mais engenhosos. Talvez nos ajudem a reconhecer que a nossa capacidade para “enlouquecer” não é tão grande como pode parecer. E talvez nos permitam esclarecer que saudáveis serão todos aqueles que, mesmo quando a vida se vira do avesso, encontram nos outros os argumentos que lhes “abram a porta” para crescer. Dando-lhes, com clareza, a importância que eles merecem ter.