Temos que colocar as coisas de forma racional e perceber a quantidade de erros grosseiros que se têm cometido em matéria de compras de vacinas. Fazem até impressão, neste caso ao nível europeu, mas são o que são.

Há dois senhores que falam deste tema de uma forma relativamente simples. Numa espécie de introdução para dummies.

Peter Kraljic, em primeiro lugar, um esloveno de 82 anos de idade, apresentou-nos, em 1983, aquilo a que se veio a chamar a matriz de Kraljic.

O que dizia Kraljic? Uma coisa básica em operações que nos remete para duas dimensões a considerar quando nos aproximamos de fornecedores. Pergunta 1: É importante, financeiramente importante, a compra que vamos fazer? Pergunta 2: Há risco, há complexidade no abastecimento?

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Se aplicarmos isto às vacinas, vamos parar a respostas positivas às duas questões o que, na matriz de Kraljic, nos dá uma posição no quadrante de “strategic items”. Ora, parece então, que os produtos estratégicos terão de ser tratados de uma maneira que outros não serão. Como?

Se o impacto económico em termos de abastecimento é elevado e se há complexidade no abastecimento (supply side), então o relacionamento com fornecedores tem de seguir monitorização muito fina das duas atividades, constante avaliação do contexto económico (e pandémico, dada a natureza do produto), avaliação das condições técnicas específicas e dos desafios que elas colocam em termos de processo, monitorização constante do que se pode fazer por conta própria e do que se pode ou deve subcontratar (e aqui os acordos de produção tipo Sanofi-Pfizer e Novartis-Pfizer para produzir vacinas Pfizer deviam ser acarinhados, potenciados e facilitados) e sempre, mas sempre, desenvolver relações de parceria com esses fornecedores.

Mas relações de parceria não são relações de amizade nem de intenções ou boas intenções. Implicam contratualização objeto de grande dedicação, compromissos legais fortes, penalizações árduas por não cumprimento e pesadas multas.

Nesta matéria, a Europa falhou redondamente. Leiam-se os contratos com fornecedores, em particular com a AstraZeneca, e veremos que a empresa apenas tem como obrigação dar o seu melhor. Nada mais.

Portanto, podemos fazer o “carnaval” que quisermos e imputar culpas à farmacêutica, mas a verdade é que o Reino Unido chegou três meses antes da UE, assinou antes com a AstraZeneca e protegeu-se melhor. A UE ficará nas mãos, por mais piruetas que dê e ameaças que faça, da AstraZeneca e muito por culpa de não saber comprar nem contratualizar. Pior um pouco. Não saber qual a tipologia de contrato e produto que tinha entre mãos e as recomendações básicas de Kraljic.

Ou seja, por maior vontade que haja em atribuir responsabilidades à farmacêutica, esta não as tem e a UE portou-se como verdadeiramente roockie, ingénua e desconhecedora dos fundamentais de qualificações de fornecedores (matéria de logística ou de gestão de operações).

De resto, não tendo lido os contratos com as demais farmacêuticas, apenas posso antecipar o que lá está escrito. Mais da mesma bondade e benevolência. Ausência de timelines e SLA’s. Tudo isto para dizer que outros contratos e outras prioridades das empresas farmacêuticas com outros países estão muitíssimo acima dos contratos com a União Europeia. E as sobras do que não houver noutros lados, pois virão para nós, que, ainda por cima, num produto estratégico, quisemos comprar baratinho. Adiante.

Yossy Sheffi, de 72 anos, Professor do MIT de origem israelita presenteou-nos com o quê em 2005? Apresentou-nos a sua matriz de risco (The Resilient Enterprise) em duas dimensões, probabilidade de disrupção que pode ser causada por um determinado evento (tremor de terra, ciclone, vírus informático, recessão, sabotagem,…) versus as suas consequências. Imagine-se que não é nenhum dos eventos anteriormente citados que surge como o mais impactante de todos em disrupção e em consequências. O mais impactante nas duas dimensões, embora seja necessário ir estudar o porquê, e o mais arriscado é “perder” um fornecedor principal/chave. Caso das vacinas, onde o fornecedor, qualquer deles, é chave.

Se conjugarmos isto com a necessidade de contratualização de Kraljic o que vemos?

O mesmo que vejo há anos e anos na universidade. Apenas uma pequena fasquia de alunos sabe disto, porque tem uma cadeira de operações. Apenas uma ínfima parte desses alunos se lembra disto, porque há sempre questões prioritárias noutras áreas e muito mais giras e putativamente nobres.

No final do dia, e porque ninguém sabe quem é Kraljic nem quem é Sheffi, as atrocidades sucedem-se. Neste caso que descrevo, do lado do abastecimento (supply side) e pela União Europeia.

Do lado das pessoas a vacinar (demand side), isto é, das tomas das vacinas e da imensidade de critérios e populações e grupos a atender (oriundos do plano de vacinação que, entretanto, estendeu critérios e abriu exceções em vez de os reduzir e fixar apenas a idade como critério que abarca todos os demais), emerge o conceito de bottleneck. Não foi lido The Goal nem se ouviu falar de Goldrath, um físico de origem israelita que explorou como ninguém o conceito de capacidade e de bottlenecks.

Mas estes dois conceitos hão-de ficar para cenas de próximos capítulos, dado que embora já tenha falado deles à exaustão, quando as vacinas vierem a sério para o mercado português, então será chegada a altura de tomarmos atenção ao senhor Goldrath e ao que nos disse. Adiante, também.

Entretanto, tudo isto porquê? Porque o conhecimento generalizado de gestão de operações e de logística é residual na classe política, na Europa como em Portugal. E é pena.

Nota: A ler, obrigatoriamente, o livro de Yossi Sheffi que saiu recentemente: The new (AB)normal: Reshaping Business and Supply Chain Strategy beyound Covid-19.