Primeiro porque se considera moralmente muitos graus acima do actual PS e do País. A simples possibilidade de que, após ter-se visto no papel de anjo do mundo, um jornalista mais azougado lhe faça perguntas e não se limite a recolher beatificamente as suas opiniões é razão mais do que suficiente para qualquer um se manter longe dos holofotes, assim o possa fazer. E Guterres pode. Logo faz. Mas, valha a verdade, a recusa de Guterres tal como a decisão que tomou tomou em Dezembro de 2001, de abandonar o Governo para o qual fora eleito, remetem para algo muito mais profundo e dramático. Remetem para aquilo que Paulo Portas afirmou esta semana ao pedir uma oportunidade para o seu partido governar em “tempo de normalidade”.

Raras vezes dois políticos expuseram de forma tão óbvia como Guterres e Portas o fizeram agora o drama de uma geração. Esta geração de políticos. Um drama que nada tem a ver com serem de esquerda ou de direita. Porque se trata de um drama de identidade e não de uma questão ideológica. Guterres já sabe (talvez o saiba precisamente desde esse quase agónico Dezembro de 2001) que Portas já não pode ter aquilo que ainda pede: um tempo de normalidade. Estes políticos formaram-se, educaram-se e prepararam-se para uma normalidade política que agora não têm. Essa normalidade tinha como cerne uma espécie de socialismo subentendido.

Nos “tempos normais” da política, esses tempos por que anseiam os líderes portugueses do BE ao CDS, o que distingue os políticos uns dos outros não é o que pensam sobre o país ou o mundo, muito menos o modelo de sociedade que defendem. Não é por acaso que à esquerda ninguém fala de comunismo ou de socialismo mas sim de esquerda, de esquerdas, de esquerdas da esquerda… e que à direita a definição é em geral feita pela negativa: não se é liberal, não se defende o socialismo, não se faz apologia do capitalismo… O “tempo de normalidade” é portanto aquele em que os diversos líderes apagam o que ideologicamente os separa e apenas divergem em questões de fulanização e de método, não nos objectivos. Foi assim, graças a esses “tempos normais” que chegámos à concepção do acto de governar como uma versão revista e aumentada da função redistributiva em que o poder real advém da capacidade de exponenciar, satisfazer e condicionar os dependentes: de Ricardo Salgado que tinha um banco para ser salvo ao senhor Ricardo que quer que lhe salvem o seu estatuto de funcionário público todos têm algo que acham que o Estado (máquina imaginária de dinheiro) deve pagar, proteger, apoiar, manter, patrocinar, subsidiar…

Em boa verdade aquilo a que nos últimos anos temos ouvido chamar contestação mais não é do que o sussurro de um pedido, um pedido de regresso aos “tempos normais”. São os bastonários apocalípticos, os bispos possessos, os revisores oficias de contas diletantes, os militares que mandam os civis fazer golpes, a performance dos sindicalistas vitalícios do “faz de conta que eu sou trabalhador”, os reformados indignados com as suas reformas de 3 mil euros, os pensionistas das pensões de miséria mas que para sua e nossa desgraça nunca descontaram miséria alguma, é a produção legislativa do nosso Tribunal Constitucional onde não se distingue o constitucionalismo da fé no abracadabra que nos trará o passado de volta… todos eles querendo apenas que os “tempos normais” regressem.

Os “tempos normais” acabaram quando acabou o dinheiro. Claro que vamos ter breves momentos de ilusão. Os próximos meses com eleições legislativas e presidenciais vão ser marcados por eles. Mas tudo será breve e de novo, mais dura ainda, a realidade se imporá. É por isso que Guterres não volta. Porque sabe que não teremos “tempos normais”. Guterres, o melhor sucedido dos políticos desta geração, para quem fazer política nada tem a ver com política enquanto forma de governo, mas sim com a projecção de uma imagem de si mesmos, sabe que estar na política nos tempos que vamos ter implicaria que ele se questionasse a si mesmo enquanto político. E é para esse exercício que Guterres não está disponível.

O palco da emergência humanitária permitiu a Guterres continuar a ser o que sempre foi – um líder socialista. E, não menos importante para o capital político que actualmente detém, a imagem de Guterres a descer desses helicópteros aterrando no meio de campos cheios de refugiados que correm em busca de mais uma remessa de víveres, possibilitou que os portugueses o continuassem a ver enquanto tal ou seja um líder em que as boas intenções se transformam naturalmente em boas acções. No meio das catástrofes humanitárias Guterres pôde continuar a olhar para nós como se experimentasse todas as dores do mundo e dizer as coisas piedosas que sempre disse sem se confrontar com o insucesso das suas medidas. A confirmar-se a sua passagem para os corredores atapetados da Gulbenkian estes não representam uma alternativa contraditória a esse mundo poeirento e miserável dos refugiados, antes pelo contrário mais uma vez Guterres estará do lado dos bons e dos justos. É aí, nessa redoma das boas intenções que apenas a maldade e a ignorância impedem que se transformem em acções, boas como não podia deixar de ser, e não nesse Portugal onde a realidade estraçalhou os sonhos e os magníficos programas dessa geração que criava riqueza à força de decretos-lei, que Guterres quer continuar. E tem razão. Afinal Guterres não volta para a política porque se tal acontecesse ele deixaria de ser Guterres. E isso, pedir a um homem que deixe de ser não apenas quem é mas quem conseguiu continuar a ser e sobretudo que pelas suas mãos participe na destruição da alta imagem que os outros têm dele, é pedir demais. Mesmo se como acontece no caso, esse homem acredita na vida eterna, tal só acontece depois da morte física não depois da sua morte política que era o que Guterres tinha como mais certo mal passasse a primeira semana em Belém como Presidente da República.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR