Em muitos países ocidentais, assiste-se, atualmente, a um paradoxo económico, refletido numa dissociação entre a oferta de licenciados com formação técnica e a procura por profissionais das chamadas TIC.

A procura de profissionais desta área é muito maior do que a oferta atual. Só a União Europeia tem identificada uma lacuna de mais de um milhão de postos de trabalho.

A educação STEAM – acrónimo inglês para Science, Technology, Engineering, Arts and Mathematicsdescreve uma abordagem de aprendizagem que utiliza as áreas das Ciências, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática como pontos de acesso para orientar a investigação, o diálogo e o pensamento crítico do aluno.

Esta dissociação está a estrangular o crescimento económico nos países ocidentais – e em particular em Portugal, onde o ensino secundário ainda tem as taxas de abandono escolar mais elevadas da Europa. Este flagelo leva a que o país não consiga atingir o seu potencial de desenvolvimento económico e social.

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Este paradoxo torna-se ainda mais contundente porque deveríamos estar supostamente bem informados sobre esta situação, pelo que se pode constatar diariamente nos jornais: “Empresa multinacional instala-se em Lisboa e procura 200 informáticos”, “Scaleup inaugura centro de competências no Porto e procura recrutar centenas de engenheiros”… E, no entanto, isso não parece tornar a aprendizagem de áreas STEAM mais atraente per se, nem mesmo os cursos de informática. Qual é, então, a raiz desse divórcio de vocações?

Qual é o objetivo do ensino secundário?

De acordo com filósofo Jacob Klein, autor de On Liberal Education, o propósito de uma educação liberal não é transmitir factos e informações, mas, sim, permitir ao educando pensar por si mesmo. E isso significa expô-lo a uma variedade de assuntos através de uma investigação profunda para os aprender. Este propósito é ainda mais verdade no mundo em que vivemos, dito VUCA, caracterizado por elevada volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade.

Ora, se precisarmos de mais pessoas treinadas nos cursos STEAM, o modelo atual de ensino secundário está a prestar-nos um péssimo serviço, pois força a uma escolha precoce, afastando os alunos das áreas STEAM pouco depois da entrada na adolescência. Por exemplo, a maioria dos alunos que escolhe ir para as áreas de Artes Visuais ou Línguas deixa de aprender Matemática e Ciências aos 14 anos.

Apostar na formação de adultos não é, portanto, suficiente. É necessário atacar o problema pela raiz e corrigir o atual modelo de ensino secundário – o modelo atual não está a servir convenientemente o que deveria ser a geração STEAM por excelência.

Porque chegámos a este ponto?

No final do funil do secundário e depois nas licenciaturas universitárias não estamos a produzir licenciados STEAM suficientes por uma série de razões, que passo a identificar:

  • Modelo de ensino secundário que afasta precocemente os alunos das áreas STEAM. Atualmente, o desinteresse em cursos STEAM por alunos que entram no ensino secundário, em particular, é sobretudo devido ao insucesso na disciplina de Matemática, que aparece associada à possibilidade de escolha de áreas sem disciplinas comuns nas áreas científicas.
  • O número de matrículas das alunas nos cursos de Informática ao nível do ensino superior ainda é muito baixo, de acordo com números recentes pela organização Portuguese Women in Tech. Em Portugal, as mulheres representam menos de 15% dos profissionais das TIC e apenas 12% dos estudantes de Engenharia nas nossas universidades.
  • O funil de conversão em engenheiros licenciados é baixo devido às altas taxas de retenção, traduzido acima dos 40% no primeiro ano nos cursos das principais universidades, levando a uma falta de motivação e a elevadas taxas de abandono.

Faço notar que não é o objetivo deste artigo apresentar uma solução específica para o problema complexo das elevadas taxas de abandono do ensino secundário em Portugal. Mas a forma como o ensino secundário está atualmente organizado não contribui para atingir os objetivos, explanados no famoso Plano de Recuperação e Resiliência entregue em Bruxelas, de capacitarmos mais alunos com competências STEAM. É um problema que deve ser enfrentado, pensando em como corrigi-lo e considerando diferentes abordagens.

O ensino secundário português

Em Portugal, o ensino secundário tem a duração de três anos e corresponde aos 10º, 11º e 12º anos, podendo ser feito no que se denomina Ensino Secundário Geral (Cursos Científico-Humanísticos divididos em quatro áreas de estudo) ou Ensino Secundário Profissionalizante (Tecnologia, Artes, Formação Profissional).

Áreas de estudo do ensino secundário

O ensino secundário está organizado em quatro áreas de estudo (Ciência e Tecnologia, Ciências Socioeconómicas, Línguas e Humanidades e Artes Visuais). Além disso, essas valências de estudo têm disciplinas centrais comuns: Educação Física; Filosofia; Língua Estrangeira I, II ou III e Português, i.e., nenhuma disciplina STEAM.

Em cada área, o aluno deverá escolher as disciplinas específicas que mais se adequam ao seu gosto e, mais importante ainda, que vão ao encontro do que deseja seguir profissionalmente. Ao longo dos três anos do ensino secundário, os alunos têm de realizar exames nacionais nas duas disciplinas bienais da sua escolha. No final do 12º ano, além do Português, têm de fazer exame na disciplina trienal correspondente à sua área de estudo.

Área 1 – Ciência e Tecnologia

Esta é possivelmente a única área verdadeiramente STEAM (embora carente de uma disciplina central de Ciências Informáticas) com as seguintes disciplinas:

  • 3 anos de Matemática A;
  • Duas disciplinas bienais das seguintes opções, dependendo da disponibilidade efetiva da escola (10º e 11º anos) – Física e Química A, Biologia e Geologia, Geometria.

Área 2 – Ciências Socioeconómicas

As disciplinas incluem:

  • 3 anos de Matemática A;
  • Duas bienais das seguintes opções (10º e 11º anos) – Economia A, Geografia A, História B.

Área 3 – Línguas e Humanidades

As disciplinas incluem:

  • 3 anos de História A;
  • Duas bienais das seguintes opções (10º e 11º anos) – Geografia A, Latim A, Língua Estrangeira I, II ou III, Literatura Portuguesa, Matemática Aplicada às Ciências Sociais (sim, é opcional e apenas por dois anos!).

Área 4 – Artes Visuais

As disciplinas incluem:

  • 3 anos de Desenho A;
  • Duas bienais das seguintes opções (10º e 11º anos) – Geometria A, História da Cultura e das Artes, Matemática B (à semelhança da área de Humanidades, é igualmente opcional e apenas por dois anos!).

Além disso, e dependendo da área de estudo, os alunos devem escolher duas disciplinas anuais das opções de ensino secundário para o 12º ano, de uma variedade de disciplinas incluindo Biologia, Física, Química, Geologia, Antropologia, Aplicativos de computador B, Ciência Política, Literatura Clássica, Lei, Economia C, Filosofia A, Geografia C, Grego, Língua Estrangeira I, II ou III, Psicologia B, Sociologia, Antropologia, Latim B, Literatura Portuguesa – disponíveis consoante a área de estudo e oferta efetiva da escola em questão.

Como é que os alunos escolhem a área de estudo?

Algumas escolas secundárias oferecem sessões de orientação para alunos do 9º ano, que são opcionais, onde, entre outros aspectos psicométricos, os testes de Raven são usados ​​para avaliar o raciocínio abstrato e a inteligência geral dos alunos.

As Matrizes Progressivas de Raven são um teste não verbal tipicamente usado para medir a inteligência geral e o raciocínio abstrato. É considerado uma estimativa não verbal da inteligência fluida, composto por 60 questões de escolha múltipla, listadas por ordem crescente de dificuldade. Este formato é projetado para medir a habilidade de raciocínio do candidato.

Dois exemplos de matrizes do teste de Raven. (A) Exemplo de um item que contém uma regra incremental de pares e uma distribuição de três regras de permutação. (B) Exemplo de um item que contém uma regra constante e uma distribuição de duas regras (XOR).

As recomendações de orientação geral para os alunos com pontuação alta no teste de Raven é irem para a área 1 (Ciência e Tecnologia) ou para a área 2 (Sócioeconomicas), onde a Matemática A é uma disciplina obrigatória. Escusado será dizer que a qualidade real da orientação depende do psicólogo designado para cada aluno, no caso de a escola fornecer esse serviço. Existem também empresas privadas que o prestam, mas estão longe de ser uma prática normal, especialmente entre famílias pobres ou de classe média.

O processo real para os alunos escolherem a área de estudo tende a ser algo ligeiro…

Quando falamos com os alunos do ensino secundário, e até universitários, acerca dos motivos para “escolherem” as suas áreas, obtemos respostas como “Sempre gostei de rabiscar”, “Eu era bom em Matemática”, “Eu não era bom em Matemática”, “Eu era bom na cadeira de Língua Portuguesa”, “Falei com os meus pais e disseram-me para ir para esta área”, ou “Os meus amigos escolheram esta área e fomos juntos”…

Porque é que esperamos que os nossos jovens escolham um caminho para o resto das suas vidas aos 14 anos? Quando não estão legalmente autorizados a trabalhar, beber, fumar, conduzir ou votar?

O atual modelo do ensino secundário português conduz a uma escolha demasiado precoce no final do 9º ano, o que leva os alunos, em muitos casos, a abandonar os tópicos STEAM. Por exemplo, um aluno que escolhe ir para a área de Artes ou para área de Línguas e Humanidades pode parar de aprender Matemática ou Ciências!

Este cenário tem consequências muito práticas e não se prende apenas com o facto de deixarem de aprender matérias importantes para as suas vidas, mas também por serem excluídos da maioria dos cursos das universidades portuguesas que requerem a Matemática A nos seus processos de admissão.

Estes alunos estão excluídos de praticamente todos os cursos de Engenharia, Administração ou Marketing, Ciências, de qualquer universidade relevante no país ou no exterior e apesar de poderem fazer os respectivos exames nacionais, a verdade é que, à luz da realidade, muito poucos os conseguirão fazer.

O sistema atual está para lá de obsoleto! Já que acarreta uma grande penalidade às perspectivas futuras dos alunos e incentiva ao divórcio de alunos talentosos e inteligentes do ensino STEAM, numa idade em que eles não podem fazer uma escolha consciente e informada.

Como poderíamos reformar o ensino secundário?

Idealmente, o Ministério da Educação português deveria ser capaz de abordar uma reforma do ensino secundário a nível nacional e torná-la mais centrada no STEAM. As minhas sugestões incluem:

  • Ampliar as disciplinas centrais comuns para incluir a Matemática em todo o currículo dos três anos do ensino secundário;
  • Fundir Matemática B e MACS na mesma disciplina, apelidando-a de Matemática Estatística, e torná-la numa disciplina central de três anos, em alternativa à Matemática A, para os alunos das áreas 3 e 4;
  • Os alunos ainda fazem muito pouco uso do Pensamento Computacional, tal como proposto pela Prof. Jeannette Wing, da Universidade de Columbia, EUA, i.e., o uso da abstração para lidar com a complexidade e o uso da automação para lidar com a escala. Não podemos perder mais tempo, precisamos tornar o pensamento computacional numa parte integrante do currículo. Podemos preparar e requalificar alguns professores de Filosofia em professores de Pensamento Computacional, cobrindo História do Pensamento, Fundamentos de Filosofia, Fundamentos de Algoritmos, I.A./ ML, Lógica Booleana, Design Thinking, problemas de Fermi, e tornando-a mais abrangente e multidisciplinar (por exemplo, como usar o pensamento computacional em Biologia, Física ou História).

Desta forma, o ensino secundário português ainda estaria, pelo menos formalmente, organizado em quatro áreas de estudo, mas, desta forma, os alunos teriam uma exposição mais ampla à Matemática e ao pensamento computacional.

As disciplinas básicas comuns para os três anos do ensino secundário seriam, então, Educação Física, Pensamento Computacional, Língua Estrangeira I, II ou III, Português e Matemática A ou Matemática Estatística.

Resumindo:

Pode dizer-se que este é um problema específico do sistema de ensino português, mas não é, de todo, assim. Ao considerar os dados de outros países ocidentais, a frequência de cursos superiores do STEAM está abaixo dos níveis pretendidos, tanto nos EUA como na maioria dos países da UE. A situação é, portanto, generalizada, embora as causas estruturais possam ser diferentes.

Esta também é uma divisão entre Leste e Oeste. Tanto a Índia como a China têm sistemas educacionais muito mais ambiciosos no que toca ao cumprimento de metas STEAM.

Se Portugal desejar regressar à convergência económica com a Europa e preparar a sua população para a liderança técnica neste século XXI, tem de enfrentar este desafio de uma forma fundacional, já que “remendar” o problema não será suficiente.