A compra da participação de David Neeleman na TAP pelo Estado, por 55 milhões de euros, e a injecção financeira na companhia, que poderá chegar aos 1200 milhões de euros, estão na ordem dia. Embora haja dados que suportem todos os pontos de vista, muitas vezes as análises mais se assemelham a programas sobre futebol à segunda-feira à noite, do que a debates técnicos. E todos beneficiaremos de uma análise realmente desapaixonada acerca de uma indústria tão complexa, como apaixonante.

A indústria da aviação suscita paixões: seja pelos seus aviões, seja pelo glamour que transmitia nas décadas de 1960 e 1970, seja pela oportunidade de viajar, ou até pela bandeira que levam na fuselagem. Embora se preveja que a indústria cresça de forma robusta (4,3% por ano entre 2019 e 2038, dados da Airbus pré-pandemia), a sua rentabilidade é reduzida, contando com custos elevados. Estes custos são de difícil controlo por parte das companhias (e.g. combustível, taxas de navegação, taxas aeroportuárias). Neste contexto, e globalmente, a indústria apenas conseguiu remunerar os accionistas acima do seu custo de capital entre 2015 e 2019 .

A TAP é um caso paradigmático desta dicotomia. Embora tenha crescido nos últimos anos, a sua margem operacional mantém-se abaixo da média europeia (6% para as companhias europeias em 2018, versus -1% para a TAP em 2018 ).

Desde a privatização da TAP, em 2015, a receita e métricas de volume (passageiros, rotas e frota) cresceram significativamente. Para isto, o crescimento de mercados emissores, como os EUA (crescimento de 232% em número de lugares entre 2014 e 2019) e o Brasil (crescimento de 13% em número de lugares, entre 2014 e 2019), muito contribuíram. Este crescimento é também acompanhado de uma consolidação da operação no aeroporto de Lisboa, à semelhança do que fazem as restantes companhias em lógica de redes mundiais (KLM em Schiphol, British Airways em Heathrow, Air France em Paris Charles de Gaulle, etc.). E a estratégia da TAP passou, nos últimos anos, a focar-se nos passageiros cujo yield (receita por quilómetro, por passageiro voado), especialmente da costa Leste dos EUA – Boston, Nova Iorque, Miami – é mais elevado.

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Vejamos como funciona a British Airways, cujo modelo de negócio (network carrier) e história (anteriormente pública) é de certa forma semelhante à da TAP.

A estratégia da British Airways em Londres Heathrow (captação de passageiros high yield, em trânsito) passa por operar num modelo hub and spoke (o termo vem das rodas de bicicleta – com um centro (hub) e vários raios (spokes) que se centram no eixo). Assim, a British Airways evita a competição com outras companhias que operam em modelo de ponto-a-ponto noutros aeroportos de Londres (Ryanair em London Stansted, e easyJet em Londres Luton). O modelo hub and spoke permite às companhias ganhos de escala (centralizar a operação num só aeroporto, reduzindo número de tripulantes e aeronaves necessárias), uma vez que o tráfego dos seus voos inbound e com elevado volume de passageiros (e.g. Nova Iorque – Londres) permite escoar tráfego para os voos de médio curso e com menor volume de passageiros (e.g. Londres – Nice).

Como é explicado acima, a British Airways não opera em todos os aeroportos de Londres (apenas em Heathrow, Gatwick e London City). A companhia aérea escolheu os aeroportos que lhe são mais rentáveis (com base na segmentação de passageiros, qualidade de serviço a prestar e custo de operação a partir desse aeroporto). Assim, a British Airways foca-se em passageiros de negócios (com critérios específicos – voos de manhã/noite, utilização de lounge, reservas flexíveis, voando para aeroportos principais).

Podemos fazer assim o paralelo com a TAP, que opera maioritariamente de Lisboa, pois esta é a opção que lhe permite transportar os passageiros high-yield e reduzir custos através da consolidação num só aeroporto. Como exemplo da elevada competição no transporte aéreo, a British Airways apenas domina 27% do mercado do Reino Unido (dados OAG, em número médio de assentos voados entre 2014 e 2020). Uma network carrier não compete em todos os aeroportos e as companhias aéreas raramente têm posições monopolistas em todo um país. Por comparação, a TAP domina 36% do mercado português (dados OAG, em número médio de assentos voados entre 2014 e 2020), o que demonstra que embora se domine um mercado, a estratégia de uma network carrier depende de um hub forte e de não competir directamente em preço em aeroportos cujo portfólio de rotas é servido pelas low-cost.

Esperar que a TAP compita em todos os aeroportos nacionais não será uma opção rentável para a empresa, nem vantajosa para os clientes (e.g. turistas ingleses que viajam dos aeroportos secundários de Londres para Faro procuram tarifas baixas, no-frills, e a possibilidade de utilização de um lounge não é um critério de compra). Assim, comparar o tráfego transportado pela TAP e suas congéneres full-service com o tráfego (essencialmente lazer e VFR – visiting friends and relatives) por parte das low-cost carriers não será coerente.

Embora a TAP tenha uma posição forte para o Brasil e África, com cerca de 25% da quota de mercado da Europa para o Brasil, a concorrência tem vindo a aumentar. A Virgin Atlantic tinha planeado voar entre Heathrow e São Paulo, mas a pandemia impediu a operação. Também a Norwegian, uma low-cost de longo curso, opera voos de Londres para a América Latina, competindo indirectamente com a TAP. E vis-à-vis as companhias que voam directamente para  África, a TAP tem uma posição forte – sendo a única a voar directamente de Lisboa para Moçambique e competindo com a TAAG na lucrativa rota de Lisboa-Luanda. Adicionalmente, as operações de longo curso acarretam custos superiores, visto que muitas vezes são necessários mais pilotos por voo e também porque as regras de segurança exigem descanso no destino, com encargos para as companhias aéreas. Mais uma vez, a indústria é complexa e não basta exalar banalidades para encerrar o debate.

A TAP encontra-se hoje numa posição financeira extremamente frágil – com um rating de crédito “non-investment grade” de B- (da Standard & Poor’s) e Caa2 (da Moody’s) ambos com outlooks negativos – o levantamento de dívida a que a maioria das companhias aéreas têm recorrido não é possível a taxas de juro sustentáveis. A TAP já apresentava contas negativas e pesados encargos de dívida. A indústria tem sido drástica a reduzir custos e a entrar em modo de reestruturação. A reestruturação da dívida (através de renegociações de maturidade, por exemplo), despedimentos colectivos, redução da frota e de rotas é praticamente certa na TAP, tal como está a ser no resto da indústria.

Assim, o ponto chave será – que hipóteses tem a TAP? A opção da insolvência poderia ter um desfecho positivo, à semelhança do que aconteceu na Hungria, com a MALEV e posterior fundação da Wizz Air, que rapidamente ocupou o vazio deixado pela MALEV. Esta companhia está atualmente em franco crescimento e em sólida posição financeira, ainda que operando num modelo low-cost. Por outro lado, na Bélgica, a Sabena (posteriormente SN Brussels e atualmente Brussels Airlines) e na Suíça, a Swissair (atual Swiss), também recorreram à insolvência. Diga-se, porém, que a Brussels Airlines, que transportou 10 milhões de passageiros em 2019, irá receber uma injecção de capital de 290 milhões de euros. A opção de investimento público na TAP poderá torná-la uma quasi-Alitalia, sempre à beira da insolvência e reestruturação, ou até na Finnair, onde o Estado é accionista maioritário e a companhia apresentou resultados líquidos positivos entre 2015 e 2019. Actualmente, muitas companhias aéreas têm conseguido levantar dívida nos mercados (as companhias americanas têm levantado dívida a ritmos elevados – notícia no Financial Times, em paywall) e algumas até têm conseguido vender participações a fundos estrangeiros (a Virgin Australia foi vendida à Bain Capital, com a exigência de manter a sede em Brisbane).

A gestão de uma companhia aérea é um exercício complexo em qualquer país do mundo. Este facto é exacerbado pelos vários choques pelos quais a indústria ciclicamente atravessa – pandemias, crises financeiras, crises petrolíferas, ataques terroristas, cinzas vulcânicas, entre outros.

A decisão acerca do investimento de 1,2 mil milhões de euros na TAP é também ela intrincada e com ramificações profundas em vários sectores da economia e sociedade portuguesa. Mas, para tomarmos a melhor decisão (mantê-la privada ou aumentar a participação estatal) deveríamos ter realizado uma análise transparente, robusta, realmente desapaixonada, na qual se pesam os reais custos, benefícios e riscos das várias opções em diferentes parâmetros – i.e., emprego, receita directa, indirecta, impostos, custos para o contribuinte, riscos da indústria.

Tal como em muitas discussões em Portugal, também no caso da TAP, as análises são muitas vezes superficiais e enviesadas. Para decidir acerca deste tema não basta torturar números, esperar que eles contem as histórias que queremos, e anunciar que não precisamos da TAP.