Como muita gente, espero que Joe Biden ganhe as eleições americanas. Ao contrário de muita gente, o meu desejo não nasce da vontade de salvar a humanidade (assim como a Terra e planetas adjacentes) das garras de Donald Trump. Nasce de uma razão mais egoísta. Quero que Trump saia, não para impedi-lo de continuar a organizar lutas até à morte entre pandas e coalas, mas porque, ao fim de quatro longos e penosos anos, é a única forma de os meus humoristas preferidos voltarem a fazer comédia – partindo do princípio que ainda se lembram de como se faz, claro.

Durante o mandato de Trump, a preocupação de comediantes como Stephen Colbert, Jimmy Kimmel, John Oliver ou Trevor Noah, deixou de ser ter graça e passou a ser agonizar sobre o Presidente. Nos seus programas, o comentário humorístico da actualidade deu lugar a uma sessão contínua de psicanálise, onde, em vez de piadas, há activismo político e indignação obsessiva sobre o “homem cor-de-laranja”. Desde o início da pandemia, então, com os talk shows a serem feitos fora do estúdio e sem público, os apresentadores, em roupa informal nas suas salas de estar, parecem youtubers ressabiados que fazem reacts, ou lá o que é, aos tuítes de Donald Trump.

Chamem-me picuinhas, mas gosto que os meus humoristas façam rir. Da mesma maneira que, sei lá, gosto que os meus canalizadores desentupam canos. Se um picheleiro, em vez de desobstruir o sifão do lavatório, insistir em arengar sobre a ligação de Donald Trump à corrupção no mundo dos autoclismos de encastrar com dupla descarga, também me vou fartar dele.

Nos últimos anos, o único tema da comédia americana é a presidência. E, se há coisa garantida é que, ganhando Biden, a comédia americana vai largar a presidência. Sei-o, porque Biden ainda não foi eleito e a comédia americana já não está com grande vontade de se meter com ele.

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Desde que o Saturday Night Live voltou em Outubro, a caricatura de Joe Biden, feita por Jim Carrey, tem sido alvo de críticas. Não por a imitação não ter graça, mas por não representar Biden como a figura simpática que deve ser mostrada aos americanos para que o elejam. Por, segundo os críticos, prejudicar as hipóteses de correr com Donald Trump. Por, resumindo, não ser inofensiva.

Não se percebe o pânico. É óbvio que Biden vai ganhar. Se o povo americano tiver o cuidado de se informar, é impossível enganar-se na escolha. Porque, como estamos fartos de saber, de um lado há Trump e do outro não há nada, absolutamente nada, que não recomende Biden. Mesmo que haja, não se vai saber. Não se consegue.

É que, se a comédia pôs a piada de lado para se concentrar em derrotar Trump, as empresas donas das redes sociais também estão a fazer a sua parte para eleger Biden. No mês passado, o New York Post publicou uma reportagem sobre mails que o filho de Biden terá trocado com um empresário ucraniano que queria um encontro com Joe Biden, para tratar de negócios com o então vice-presidente. O Twitter e o FB, armados em editores jornalísticos, resolveram proibir a história de circular nas suas plataformas, chegando ao ponto de o Twitter suspender a conta do Post. (Twitter que, ultimamente, suspende contas por qualquer razão, limitando o discurso, quer a defensores da liberdade de expressão, quer a defensores da sua restrição que, ao verem-se censurados, protestam e dizem que os seus tuítes foram em sentido irónico. O que, às vezes, é difícil de acreditar. Percebe de ironia quem não repara que lhe aconteceu aquilo que está sempre a exigir que aconteça a outros?)

Na sequência disso, Glen Greenwald, um jornalista conhecido pelo seu papel na publicação das denúncias de Edward Snowden, tentou escrever sobre o caso na revista online The Intercept e foi censurado pela direcção. Curiosamente, The Intercept foi fundada pelo próprio Greenwald, com o objectivo de ser uma publicação em que os jornalistas não fossem sujeitos a pressões editoriais por parte de interesses políticos e empresariais. Pumba!, mais uma ironia para escapar aos do parágrafo anterior.

Neste momento, para eleger Joe Biden, é válida a censura por parte das redes sociais e meios de comunicação social. Donald Trump tem muitos defeitos, mas durante a sua presidência não houve nada que não se pudesse dizer sobre ele. Com Trump, a América não é um desses regimes autoritários onde não se pode dizer mal do chefe. No máximo, é um regime (inserir nome a inventar) onde não se pode dizer mal do candidato a chefe. Sempre na vanguarda da inovação, os americanos. E é esta a segunda razão para querer que Biden ganhe: estou muito curioso para descobrir se se vão manter os limites à liberdade de expressão e a censura ao escrutínio sobre Biden, quando for Presidente.

Diria que sim. Trata-se do género de restrições que, uma vez impostas, só são retiradas com muito esforço. Além disso, os tempos não estão para esse capricho de dizer o que se pensa sem sofrer represálias. Na América e no resto do mundo civilizado. Eis dois pequenos exemplos, só do último mês:

  1. Samuel Paty, um professor francês, foi decapitado depois de, numa aula de Cidadania sobre liberdade de expressão, ter mostrado as caricaturas de Maomé publicadas no jornal satírico Charlie Hebdo. (Felizmente, no ranking de histeria fanática, a caricatura de Maomé ainda está bastante acima da de Joe Biden). Imediatamente, Manuel Linda, bispo do Porto, disse que a culpa da decapitação é dos “preconceitos dos europeus (…) que estão sempre de dedo em riste a acusar as religiões”. Malditos preconceitos e as suas facas afiadas. Já o jornalista Miguel Sousa Tavares, considerou que o que o Charlie Hebdo faz “não é jornalismo, nem é um exercício de liberdade de imprensa: é pura provocação e ofensa às crenças religiosas alheias: é terrorismo jornalístico”. Entretanto, por agora ser candidata à Presidência da República, houve quem viesse lembrar que Ana Gomes, aquando do primeiro ataque terrorista ao Charlie Hebdo, escreveu: “Porquê insistir na representação do Profeta, que se sabe ofender os muçulmanos? Não estou de acordo. Não em meu nome”. E, para não parecer uma embirração portuguesa, Justin Trudeau, Primeiro-Ministro do Canadá, disse que a “liberdade de expressão tem limites” e que devemos ter cuidado para não ofender. Devo dizer que o que ele disse me ofende, mas tudo bem, a vida é mesmo assim, não é razão para ir disparado à gaveta dos talheres.
  2. Na semana passada, falando sobre a nova lei sobre discurso de ódio, Humza Yousaf, o Ministro da Justiça escocês, defendeu que as conversas privadas, como as tidas num jantar de família, em casa, devem poder ser alvo de investigação criminal se houver base para serem consideradas “discurso de ódio”. (Seja lá isso o que for. Acho muito difícil ilegalizar-se um sentimento, por mais desagradável que seja. Eu, por exemplo, estou sempre a tentar não sentir desprezo, mas ao ler sobre este tema é impossível controlar-me).

A Igreja Católica escocesa veio pedir esclarecimentos sobre a lei e o entendimento que o Ministro faz dela, por temer que certos aspectos do catequismo possam ser considerados, lá está, “discurso de ódio”. Quando temos de contar com a Igreja Católica – a mesma do Bispo Manuel Linda – para defender a liberdade de expressão, estamos bem lixados. E lixados de uma forma tão íntima que o próprio livro sagrado dos católicos a proíbe. Mesmo que sejamos casados com quem nos está a lixar.