Está para breve o fim do último momento de internacionalismo proletário ao qual em Portugal certas pessoas se dedicam com particular enlevo. Por muito que seja fácil e fique de graça dar lições aos outros, sob a forma de abaixo-assinados ou excitações jornalísticas, o interesse pelo Brasil de Bolsonaro tenderá pacatamente  a esvair-se. Bolsonaro não é Trump (ou Reagan, ou George W. Bush) e o Brasil é ligeiramente diferente dos Estados Unidos. Falta-lhe por inteiro a capacidade de sustentar uma atenção e uma paixão continuadas, que os Estados Unidos continuam a ser os únicos a merecer. Depressa passará de moda a exibição de temores incontidos com o fascismo tropical. Outro objecto virá depressa ocupar o seu lugar, como mandam as regras do donjuanismo político-intelectual.

Por mim, aproveitava a pequena pausa que se aproxima para pensar um pouco em Portugal e na curiosa situação de equivocidade e ocultamento, de lusco-fusco, em que vivemos. Tudo parece, sob a batuta de António Costa, viver numa atmosfera de incerteza em que nada é exactamente o que parece, numa ambiguidade organizada que cria as condições da sua própria perpetuação. E isso desde os primeiros passos da criação da geringonça.

Com efeito, é muito estranho viver com um governo que depende de um apoio parlamentar que se define simultaneamente como garante dele e como oposição a ele. Para o PC, por exemplo, é um governo de direita, sendo os únicos méritos da sua política fruto exclusivo das exigências do próprio PC. O Bloco, com ligeiras variantes, não anda longe disso e compete com o PC na reivindicação da responsabilidade do que de bom, ou razoável, o governo possa fazer. Costa e o PS, deixados a si mesmos, seguiriam, por tendência natural historicamente comprovada, uma política de direita não muito diferente da defendida pelo PSD e o CDS. Dito de outro modo: estão com Costa e estão contra Costa. A esquizofrenia da coisa é palpável, mas é uma esquizofrenia que convém a Costa, cujo ineteresse em mantê-la é palpável. A equivocidade e o ocultamento são o seu seguro de vida.

Depois, há a questão da austeridade. A página da austeridade, diz-se, foi virada. Mas, ao mesmo tempo, não foi. Não se explicariam de outro modo as cativações do ministro das Finanças, que se sentem em tudo. Os professores que o digam e que o diga o anterior ministro da Saúde, uma pessoa aparentemente simpática, sistematicamente obrigada a fazer tristes figuras, anunciando aos hospitais dinheiro que fatalmente não chegava ao destino. O exemplo mais notório, até pelo inconfessável cinismo da coisa, é o da ala pediátrica do S. João, que merece tornar-se um caso de estudo da arte das promessas diferidas. Ou o último Orçamento do Estado, “tecnicamente incoerente” segundo os técnicos da UTAO. Tal como o PC e o Bloco estão pelo governo e contra o governo, Mário Centeno pratica a austeridade e não pratica a austeridade.

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Face a isto, que é uma pequena parte da encenada esquizofrenia reinante, toda a história de Tancos adquire quase o estatuto de símbolo. O ex-ministro Azeredo Lopes resumiu a atitude geral do governo com indisputável brilho. As armas foram roubadas – mas podem não ter sido roubadas. Recebeu uma informação sobre o encobrimento do furto de material militar – mas não a interpretou como uma informação sobre o encobrimento do furto de material militar. E crescem rumores que não teria sido o único entre as altas instâncias do Estado a viver nesta curiosa duplicidade. Sabem, mas, ao mesmo tempo, não sabem.

Estão e não estão, acabou a austeridade e não acabou a austeridade, há roubo e não há roubo, sabem e não sabem. Aparentemente, é bem verdade que o que nasce torto, e este governo nasceu mesmo torto, tarde ou nunca se endireita. Muito pelo contrário, tende a entortar-se mais a cada dia que passa, na busca da ocultação da sua equivocidade original. E a equivocidade tende, em consequência, a alargar-se progressivamente, como uma mancha negra que desastradas operações de limpeza fazem alastrar pelo soalho inteiro.

De acordo com esta concepção geral das coisas, não surpreende que a preocupação em falar sem ambiguidades seja particularmente mal vista. E, no fundo, percebe-se que os adeptos do lusco-fusco, da hora do lobo, acreditem que o exercício de um discurso que vise, tanto quanto possível, evitar o equívoco, como o de Cavaco Silva no último volume das suas memórias, apareça como exemplo de falta de “sentido de Estado”. O dito “sentido de Estado”, no estado em que estamos, define-se pelo cultivo da arte de esconder sistematicamente uma coisa atrás de outra, num jogo que, se tudo correr bem, e com sorte, se pode prolongar durante muito tempo. Pelo menos até ao momento em que tudo ruirá como um castelo de cartas.

Uma coisa eu sei. Por mais hábil que Costa seja na organização deste estado de coisas, a verdade é que a degradação da confiança política, que já anda pelas ruas da amargura, só se pode acentuar, e com ela a desorientação das pessoas. A vida no lusco-fusco faz-nos perder o sentido das formas e dá vontade de ver o que nos rodeia mais nitidamente. Nesse momento, qualquer pequeno ou grande acidente bastará para pôr fim à extravagante tolerância vigente para com a duplicidade que faz parte do nosso actual modo de viver.