1 Os portugueses são extraordinários: eis Portugal “ao postigo” como se sempre se tivesse vivido assim e comercializado assim. O postigo nasceu, ocupou e venceu. Ganhou omnipresença: da desarmante naturalidade com que António Costa se lhe refere como a uma salvifica bóia de salvação (e é), à vitalidade com que o mais humilde vendedor anuncia atacadores ou frutos secos por de trás de um mal amanhado tampo de mesa aberto para a rua…. Como se desde o berço ao túmulo sempre tivéssemos dependido deste artefacto agora poderosamente renascido das cinzas de uma semântica em desuso. Sem que – ainda mais extraordinário – a ninguém atrapalhe esta novíssima forma de transação, a verdade é que, para o bem e para o mal, sempre a necessidade nos espevitou o engenho. Como agora: avenidas e ruas declinam em vários formas e feitios este feliz came back cuja utilidade foi nacionalmente abraçada e posta a render com arte e manha. Há meses – lembram-se? – eram só os restaurantes. Hoje vejo homens “ao postigo” a abrir meias como baralhos de cartas, mulheres a ensaiar roupa na rua (eu também), num carrossel onde se somam vendas ao postigos de sapatos, bebidas, drogaria, lingerie, roupa de casa, molduras, candeeiros, bolos enfeitados, amêndoas de açúcar, ovos de Páscoa. E tutti quanti, viva a resiliência “criativa” (há mais acção “criativa” para além de Marcelo)

Ou seja, viva o desenrasca onde somos imbatíveis. Se derem a um português – electricista, carpinteiro, advogado, manipulador da vidraça, arquitecto, cenógrafo –, um determinado prazo para entregar uma obra, ele não o cumprirá. Os genes nunca lho permitiriam. Para desenrascar uma coisa num prazo absolutamente impossível, ou improvisar em horas uma alternativa, já se sabe que se poderá contar – e brilhantemente – com isso. Hélas, o brilho do desenrasca e o dom do improviso, chocam de frente com a responsabilidade e o compromisso. São um faz de conta, como o queijo tipo serra, uma aproximação, como o postigo “tipo” comércio.

2 A direcção do PS não recorreu ao postigo, instruiu a bancada, “Moedas ao Parlamento.” A intimação esconde mal o susto: estava tudo a correr tão bem com Medina… Lisboa era deles, que chatice isto agora, era preciso começar a tratar já do assunto. Chamavam-se os da troika. Com bondade dir-se-á que foi um despropósito (justamente, a que propósito eram chamados agora para responder perante aquele especifico tema?); com lucidez afirmar-se-á que o gesto é feio, pouco sério, revela o pior do combate político. Além de que o rabo do gato está mal escondido, vê-se à vista desarmada o embaraço irritado que a escolha de Carlos Moedas para candidato à Câmara de da capital suscitou aos donos disto tudo. Vai ser aliás muito interessante de observar daqui até Outubro a que instrumentos e argumentos irá recorrer a esquerda. Quais deles colocará dentro do seu postigo para o ir abrindo à medida que a campanha pise o chão de Lisboa. Se forem todos iguais a esta reveladora convocatória parlamentar dos deputados socialistas, não é só o rabo do gato que se vê bem demais. É o gato todo.

3 O Presidente da República é que, dentro ou fora de um postigo, dará sempre que falar. Há políticos assim. Sucede que desta vez há boas razões para falatório e perplexo. O surpreendentíssimo gesto presidencial de promulgar os apoios sociais, começou num postigo onde o Chefe de Estado também se metera a sós com as suas cogitações e só depois, em jogada de alto risco e incerto desfecho, chegou ao país.

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Ainda não há mortos nem feridos, apenas muitos alertas vermelhos. Todos acesos, claro. Julgo impossível haver dúvidas de que era isso que o Presidente queria.

4 Quem não precisou de postigo algum foi a polícia. Tinha a rua, queria-a só para si: “pode explicar qual a razão da sua presença na via pública?”, perguntou-me um garboso jovem fardado. Era meia dia e vinte de um sábado, estranhei tanto zelo. Deviam ser “ordens superiores” que aquela brigada no alto do Parque Eduardo VII ia executando numa modorra ensolarada. Mas disparatada até mais não. Confunde esta insistente ausência de critério das “autoridades”: ideias mal pensadas, instruções mal distribuídas, custos, perdas de tempo, prioridades erradas, trabalhos inúteis. É como com a campanha de vacinação que já teve distintas prioridades, diversas listas de escolhidos, numerosas alterações, trocas, e até sms para portugueses já mortos. Das duas, uma: ou pretendem de facto e até ao fim dos tempos prender-nos em casa onde já estamos, capturando-nos gestos e vontades, ou então por favor, senão for pedir de mais, organizem-se.

5 A semana maior da liturgia – Semana entre todas Santa – é grande demais para caber num postigo mas cabe em qualquer coração. Nos corações de tantos de nós, aflitos, magoados, enlutados pela tormenta e porém esperançosos, na sede do absoluto e no vibrante recomeço que a Páscoa é. Uma “passagem” que se inicia hoje, quinta-feira, celebrando a instituição da Eucaristia e irá caminhando silenciosamente por entre o sofrimento e o luto, até ao Domingo da Ressurreição.

Também foi assim há dois mil anos. E cá estamos.