Já em pleno século XIX, José Maria Eça de Queirós, na sua obra por todos mais reconhecida, Os Maias, abordava de alguma forma o tema do centralismo das decisões políticas.

Coube a João da Ega, enquanto debatia com Craft o estado das finanças do país e a bancarrota, afirmar que, fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento. Na obra, a referência feita a Arcada, refere-se ao Terreiro do Paço.

Ainda viajando pelas magníficas obras literárias do mesmo autor, também em Na Ilustre Casa de Ramires há referências à crítica do centralismo do Estado. “Portugal é uma fazenda, uma bela fazenda possuída por uma parceria (…) Nós, os Portugueses, pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis milhões que trabalham na fazenda, ou vivem nela a olhar… e que pagam; e uns trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam a ‘parceria’ que recebem e que governam.

Em março, mas já no século XXI, no âmbito da presidência do Conselho da União Europeia que o país detém até junho deste ano, António Costa, na abertura de uma conferência dedicada ao “Dia Digital”, que decorria em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, anunciou a criação da Europe Startup Nations Alliance através da assinatura de um princípio de acordo intitulado “Declaração de Lisboa”, que constituirá “uma base de entendimento para promover o respeito pelos valores europeus e pelos valores fundamentais no ambiente digital, fomentar a digitalização da economia como fator de prosperidade e competitividade, e encorajar a cooperação internacional nesta área”.

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Esta estrutura europeia dedicada ao empreendedorismo e denominada Europa Startup Aliança das Nações,, cuja representação permanente ficará em Lisboa, visa competir com outras áreas geográficas na inovação tecnológica.

Por certo, todos concordarão das boas expectativas e oportunidades que este projecto importa para o país mas as perguntas que agora podemos fazer é: Porquê em Lisboa? Porquê tudo em Lisboa?

Em primeiro lugar, é preciso referir que ainda está fresca e não esquecida toda a polémica com a promessa de António Costa com a transferência da Autoridade do Medicamento Infarmed para a cidade do Porto. Ou seja, o que António Costa prometeu, em 2017, não cumpriu.

Em segundo lugar, convém recordar que, aquando da votação para que o Porto albergasse a Agência Europeia do Medicamento, a cidade invicta foi a sétima mais votada entre as 16, significando isto, que por parte dos nossos parceiros europeus há um total reconhecimento sobre as capacidades situadas a norte do país para a atração de investimentos com capacidade estrutural de albergar as mais diversas instituições europeias.

Mas há uma outra razão para além do magnífico resultado que a cidade do Porto obteve. Ou seja, há um dado que importa reter. Inicialmente, e mais vez, o Governo pensou em trazer para a Lisboa a Agência Europeia do Medicamento, mas sob uma chuva de críticas desistiu rapidamente da ideia.

E porque razão o fez? Porque a capital do país era, à altura, e ainda é, palco da sede de duas agências europeias: a Agência Europeia da Segurança Marítima e o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência. O Porto foi, portanto,a segunda escolha do Executivo.

Talvez uma terceira agência em Portugal e sediada na mesma cidade fosse para Bruxelas impensável. Por isso, podemos concluir, que, por existirem duas agências com sede na capital do país, no caso da Agência Europeia do Medicamento alguém prejudicou a cidade do Porto e não fui eu nem o prezado leitor.

Agora, com a Europa Startup Aliança das Nações, (mais uma estrutura europeia em Lisboa), António Costa não vê, ou não quer ver, por um lado, todos os erros cometidos no passado com a centralização em Lisboa de organismos quer estatais ( leia-se, sob tutela nacional), quer europeus, e, por outro, nega todas as provas e evidências que já foram dadas pela enorme capacidade a vários níveis para que esta estrutura, agora a ser criada com sede permanente em Lisboa, pudesse ser localizada a Norte.

A gritante concentração de recursos financeiros públicos na Grande Lisboa, onde se situa todo o Governo e praticamente todos os organismos estatais, em nada pode contribuir para a redução do desequilíbrio da ocupação do território.

Uma das grandes questões do ainda XXI Governo Constitucional, também ele presidido por António Costa, seria dar primazia à “prioridade política da descentralização, tendo em vista a coesão territorial e a diversificação dos polos de desenvolvimento” e a “maior equidade nas oportunidades de valorização do país através da desconcentração de entidades e serviços”.  Mas tudo isto não passou de um projeto de intenções escrito em papel no item “propaganda”, guardado numa gaveta ali para os lados da Arcada.

Muitos podem ter medo de conhecer o conceito de descentralização, mas a concentração de poder e de estruturas na capital da nação deve fazer com que nos interroguemos sobre a evolução do Portugal de Eça, do século XIX, para o Portugal de hoje, do século XXI.

Como alguém recentemente disse, o Porto também tem “internet, fibra ótica, empresários e talento”. Mas para António Costa isso não interessa nada. Pelos menos, é essa a imagem que ao longo dos tempos vai passando, dando os factos razão a João da Ega.