José Sócrates tinha razão. Absoluta razão. Aproveitando os generosos fundos europeus que existiam então, no final da primeira década do século, Portugal deveria ter apanhado o comboio e iniciado a construção da rede de alta velocidade. Digo isto sem ponta ironia e com o acto de contrição de quem, na altura, sendo ainda mais ignorante do que é hoje, embarcava também no discurso da oposição de que Portugal não tinha recursos para construir o dito comboio, até porque, como todos sabemos, “estamos apenas a 1 hora de avião de Madrid”.

A Europa Continental vive uma verdadeira revolução na utilização dos comboios que está, em grande medida, a passar ao lado de Portugal. Em primeiro lugar, os comboios nocturnos estão a ressuscitar. Depois de terem sido substituídos pelos voos ao longo das últimas décadas, a tendência de apanhar um comboio nocturno para viajar para outros países está de volta. Às preocupações ambientais de uma geração mais nova, que está disposta a pagar mais e a demorar mais tempo a chegar ao destino para diminuir a pegada ambiental dos voos, junta-se o segmento dos negócios. Em vez de fazerem uma madrugada para apanhar um avião para terem uma reunião em Viena às 9 da manhã, podem apanhar um comboio ao final da tarde em Milão e acordar tranquilamente no dia seguinte frescos e prontos para trabalhar. A procura é tão grande que existem inúmeras empresas que estão com dificuldades em obter carruagens em tempo útil para conseguir fazer face à subida da procura.

Em segundo lugar, a liberalização do mercado, impostas pela União Europeia, que promove a existência de várias empresas dentro do mesmo país, está a forçar à baixa dos preços. No fundo, começa a acontecer nos comboios aquilo que aconteceu nos aviões com o aparecimento das low cost. Em Itália, por exemplo, a Trenitalia e a Italo competem no mercado da alta velocidade. Em Espanha, para além da estatal Renfe, os franceses da Ouigo e a iryo competem num mercado que, actualmente, permite fazer os 650 quilómetros entre Madrid e Barcelona no espaço de duas horas e meia por um preço médio de vinte euros.

O mundo descrito até aqui pode parecer muitíssimo estranho em Portugal. A nossa posição geográfica periférica na Europa continua, apesar de tudo, a criar fortes incentivos à utilização do avião como meio preferencial para viagens para outros países. Se é difícil pensar na criação de comboios nocturnos viáveis entre Portugal e o centro da Europa, continuam a persistir erros que são quase inexplicáveis.

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Em primeiro lugar, a ausência de uma ligação de alta velocidade a Madrid. No Plano Ferroviário Nacional, apresentado em Novembro de 2022, existe uma descrição daquilo que o governo planeia fazer para integrar Portugal o motor económico da Península Ibérica. Essa descrição é, contudo, algo confusa e faz depender as ligações entre Lisboa e Madrid de várias condicionantes, a começar pela construção de uma nova ponte sobre o Tejo. Vale a pena citar um trecho do documento para ser rigoroso:

“Esta nova linha [entre Évora e Elvas] irá permitir, também, a melhoria dos serviços de passageiros entre Lisboa e Madrid. Com a conclusão da LAV Badajoz – Plasencia, em Espanha, prevista nos mesmos prazos, o tempo de viagem entre as duas capitais será de cerca de 6h, ainda insuficiente para competir com o avião, mas competitivo com o automóvel e o autocarro.”

Noutra passagem, falando da potencial existência da nova ponte sobre o Tejo, o documento afirma que:

“Os serviços internacionais para Madrid também serão muito beneficiados com a construção da nova travessia do Tejo, passando a permitir um tempo de viagem de 1h20 entre Lisboa e Badajoz. Contando que, nesta fase, já estará completa a LAV entre Badajoz e Madrid, o tempo de viagem total entre as capitais deverá ficar claramente abaixo das 4 horas, num patamar que já se começa a tornar competitivo com o transporte aéreo.”

Deste documento podemos concluir que, enquanto um percurso entre Madrid e Barcelona, sensivelmente a mesma distância do que Lisboa-Madrid, demora duas horas e meia, Lisboa permanecerá a umas longínquas seis horas e, eventualmente, num futuro incerto, a quatro horas de comboio. Na prática, esta ligação de pouco servirá, na medida em que não é minimamente competitiva com o avião.

Em segundo lugar, recentemente ficámos a saber que o governo continua a insistir, indo contra o ar do tempo na Europa, que a CP deve manter o monopólio da exploração ferroviária em Portugal. Para tal, o governo pretende criar uma barreira dificilmente transponível: em vez de realizar toda a nova construção ferroviária em bitola europeia, que permitiria às empresas estrangeiras utilizarem o seu material circulante em Portugal, as novas infra-estruturas deverão manter a bitola ibérica. A justificação para esta opção é francamente extraordinária. O governo afirma que temos, acima de tudo, de defender a CP enquanto empresa pública. Notem que não há o mínimo interesse pelos passageiros, pela eficácia no transporte de mercadorias, pela competitividade no preço, pela qualidade do serviço. Pelo contrário, a defesa da CP pública constituiu um fim em si mesmo.

Sobrepondo a mapa da Europa com um mapa, por exemplo, dos Estados Unidos ou do Brasil conseguimos perceber o quão pequeno é o nosso continente, tornando-o especialmente apto para a utilização do transporte ferroviário. O comboio é o futuro na Europa e, em muitos casos, já o presente. A Alemanha, por exemplo, depois de uma experiência bem-sucedida na pandemia, criou recentemente o D-Ticket que, por apenas 49 euros por mês, permite andar em toda a rede ferroviária do país, à excepção das linhas de alta velocidade. Num momento em que o mundo precisa urgentemente de descarbonizar e de tornar-se ambientalmente eficiente, as opções do governo português deixam-me verdadeiramente perplexo pela sua falta de racionalidade no médio e longo prazo.