No estilo apocalíptico em vigor na imprensa dos nossos dias, já lhe chamam o maior movimento de população na Europa desde a II Guerra Mundial. Primeiro, foram os africanos a cruzar o Mediterrâneo entre a Líbia e a Itália; agora, são os sírios na rota balcânica entre a Turquia e o Norte da Europa. Não há mistério aqui: uma das regiões mais ricas e mais seguras do planeta está cercada por algumas das regiões mais pobres e mais perigosas. A Alemanha prevê acolher 800 000 candidatos a asilo este ano. E não será o fim. Nos países vizinhos da Síria, há mais quatro milhões de refugiados.  No Norte de África, haverá outro milhão de migrantes acampados. Que fazer ? E antes disso: que dizer?

Angela Merkel tem dito o que é necessário. A sua firmeza contra os assomos de violência anti-imigrante é mais do que politicamente correcta. As nossas leis e os nossos valores e até as necessidades demográficas de um continente envelhecido não nos permitem simplesmente levantar muralhas e fechar as portas. Mas tal como não devemos tolerar xenofobias e racismos, não nos podemos permitir demonizar aqueles a quem as centenas de milhares de chegadas sugerem dúvidas e preocupações. A imigração, para as sociedades europeias, é um problema muito específico. É costume lembrar que 86% dos refugiados do mundo estão em países fora da Europa. Mas uma coisa é ceder um canto de deserto para um acampamento mantido pela ONU, e outra é providenciar casas, lugares em escolas e atendimento em hospitais, sempre com a “inclusão” em mente, como é hábito do norte da Europa. No resto do mundo, não é desse modo que os migrantes são tratados: quase setenta anos depois, os palestinianos no Líbano e na Jordânia continuam segregados nos campos de refugiados da ONU; na África do Sul, os trabalhadores de Moçambique e do Zimbabué são perseguidos; o Japão quase não conheceu imigração até agora. A Europa não é assim, não quer ser assim, nem pode ser assim. É por isso que os refugiados sírios preferem a Alemanha à Turquia. Mas não ser como a Turquia tem custos e, por isso, também tem limites.

As tragédias do Mediterrâneo ou das estradas dos Balcãs não podem servir para calar debates. A migração é um negócio para as redes de tráfico humano e para os empregadores de mão-de-obra ilegal: os 71 refugiados sírios deixados mortos num camião na Áustria poderão ter rendido 150 000 euros aos traficantes. A migração é também uma questão venenosa. Divide países, como o Reino Unido e a França por causa de Calais. Alimenta populismos, como o do UKIP no Reino Unido, da Frente Nacional em França, ou de Donald Trump nos EUA. Nem todos os seus efeitos são negativos, mas também nem todos são positivos: no caso dos EUA, o sociólogo Robert Putnam concluiu que diásporas muito grandes, além da pressão sobre os recursos públicos, diminuem “o capital social” (a confiança interpessoal) das sociedades de acolhimento. A circulação e a diversidade são inerentes à globalização, e provavelmente uma vantagem para qualquer economia competitiva. Mas, como há vários anos pergunta David Goodhart, até que ponto são compatíveis com a coesão e a solidariedade que todos gostaríamos continuassem a estruturar as nossas sociedades?

O simples deve-e-haver não chegam para decidir a questão. Desde logo, porque há muito coisa que não sabemos. Não sabemos, por exemplo, qual a verdadeira dimensão do fenómeno: há vinte e quatro anos, no rescaldo do colapso das ditaduras comunistas da Europa, as imagens impressionantes de velhos barcos transformados em formigueiros de albaneses a tentar entrar em Itália puseram logo a correr profecias tremendas sobre a submersão da Europa ocidental pela população do leste. A histeria das primeiras páginas não é sempre um guia seguro para o que está a acontecer. Também não sabemos qual é a capacidade de absorção das sociedades ocidentais. Em meados da década de 1960, já havia quem a julgasse esgotada. Não estava. Mas isso não quer dizer que possamos apreciar todas as suas consequências. Por exemplo, aqueles que chegam às praias ocidentais não são os mais pobres. São os que podem pagar milhares de dólares aos traficantes. Desembarcam com todas as expectativas e aspirações. De outra maneira, não se teriam arriscado tanto. Alguns deles ou dos seus descendentes não vão ter a sorte que esperavam, e acabarão por culpar a sociedade que os acolheu e desiludiu. Os jihadistas têm explorado esse mal-estar no caso da imigração muçulmana. É por isso que, neste Verão, a Europa se preocupa ao mesmo tempo com aqueles que fogem da Síria para escapar aos jihadistas, e com aqueles que fogem da Europa para ir treinar na Síria com os mesmos jihadistas.

Os problemas do mundo que o Ocidente não foi capaz de resolver com as suas intervenções e ajudas, não os vai resolver agora absorvendo as populações do resto do planeta. Entendamo-nos: não é aceitável deixar seres humanos a morrer no mar ou nas fronteiras, mas não é prudente induzir ainda mais gente a correr o risco da migração. Há quem pense que a questão só pode ser resolvida na origem. Com efeito, o problema da imigração síria esconde a tolerância ocidental da ditadura de Assad e do abominável Estado Islâmico. Mas nada aí irá mudar,  até porque nunca dependeria da Europa, mas dos EUA. Que fazer, então? A esse respeito, conviria escutar o professor Paul Collier, da Universidade de Oxford, autor de Exodus (2013), o melhor livro sobre imigração. No caso da Síria, Collier sugeriu recentemente o estabelecimento de zonas de segurança, dentro da Síria ou em países limítrofes, onde os refugiados pudessem viver e trabalhar, enquanto esperam o processamento dos seus pedidos de asilo ou o regresso após o fim da guerra. É uma ideia,  sobre uma questão que sempre gerou mais atitudes do que ideias.

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