Governar em tempos de incerteza é muito difícil. A dúvida é a mãe de todas as preocupações.

1 Há a possibilidade de que qualquer recomendação de testes que seja inferior a controlo repetido de todos poder ser insuficiente. Trinta a 50% dos indivíduos infetados com SARS-CoV-2 na faringe, talvez mais, nunca chegam a ter sintomas e poderão ser transmissores. Há acumulação de provas sugerindo que o período de maior transmissibilidade do SARS-CoV-2 é na fase pré-sintomática.  Mas será exequível manter testes sistemáticos e repetidos em populações numerosas? Não há recomendações sobre testar sistematicamente todos os assintomáticos e não há recomendação que não se refira à disponibilidade dos testes como um fator orientador de políticas. Logo, um dos maiores desafios para os sistemas de saúde incide sobre a decisão de quem testar e com que frequência. Despistes, seja de que doença for, sem estratégia e planificação é gastar tempo e dinheiro. Seria bom que o ministério da saúde disponibilizasse os números de testados e os respetivos resultados, por sintomas, idades, grupos de risco e localização geográfica, de forma a podermos comparar nacional e internacionalmente o que estamos a testar e os ganhos de saúde conseguidos. Vai ser preciso uma política de testes que se centre em grupos de maior risco de morbilidade e mortalidade, em pessoas institucionalizadas e seus cuidadores, em doentes internados, profissionais de saúde, corpos de segurança, bombeiros. Não vai ser possível tentar testar toda a população de nenhum país.

2 A DGS emitiu uma norma para doentes oncológicos. Em 2 de abril! Depois de já termos um conjunto de disposições internacionais, era preciso mais este conjunto de letras? Ora bem. Não tratar quem tem uma infeção dependerá sempre das condições da doença de base, o cancro, e da infeção. Não era preciso a norma para nos ensinar isso. Não é ainda evidente que todos os doentes com cancro e SARS-CoV-2, se assintomáticos, devam deixar de ser tratados com qualquer tipo de tratamento oncológico. Há riscos oncológicos imediatos superiores aos da Covid-19. Logo, dever-se-á testar sempre antes de cada ciclo de quimioterapia? Todas as semanas em doentes internados? Idealmente, seríamos todos testados logo pela manhã. O cumprimento integral da norma da DGS implicaria que os doentes em tratamento ambulatório fossem mais vezes ao hospital do que o que agora é necessário, o que contraria o que deve ser a regra. Por outro lado, incluir exames complementares de diagnóstico determina sempre mais tempo até início do tratamento. A questão é difícil e até percebo que há a intenção de reduzir o risco de morte por infeção com SARS-Cov-2 em doentes imunossuprimidos, por um lado, e diminuir o risco de contágio, por outro.  Volto onde comecei no ponto anterior. Há a possibilidade de que qualquer recomendação de testes que seja inferior a controlo repetido de todos poder ser insuficiente. No entanto, antes de avançar com a imposição de testes sistemáticos na orofaringe de todos os doentes em tratamento, cenário ideal, talvez  fosse mais útil garantir a imposição de medidas generalizadas de elevada proteção aos trabalhadores e doentes, começar por testar o pessoal, reforçar as restrições de acesso aos serviços de oncologia, testar sistematicamente todos os doentes sintomáticos suspeitos, ainda que aceitando o risco de ter transmissores assintomáticos, e todos os doentes que sejam internados ou candidatos a procedimentos invasivos com risco de contágio a partir de aerossóis. Temo que ainda ninguém saiba a resposta sobre o que seria melhor, mas o bom é sempre melhor do que o ótimo que não se consegue atingir. Em oncologia, durante esta pandemia, o mais importante seria que nenhum doente ficasse para trás, sem diagnóstico ou sem tratamento. Não é o que está a acontecer, problema que, reconheçamos, não é apenas de Portugal.

3 Não se deve confundir R0 com Rt. O segundo, o número teórico de contagiados a partir de um transmissor num determinado momento da evolução da epidemia, é o que nos interessa. Mas é preciso uma nota de cautela sobre o valor real deste número, o Rt, com os dados disponíveis atualmente. Os primeiros cálculos foram feitos em ambientes confinados e com recurso a testes apenas em doentes sintomáticos. Não podemos ter boas estimativas enquanto não nos for possível saber com razoável aproximação o número de pessoas com vírus – os com zaragatoas positivas para SARS-CoV-2 na faringe –, quantos portadores são transmissores e, fundamentalmente, qual o número de pessoas com IgG, a marca de que se contactou com o vírus, na população. Com a continuação da realização de testes na população, apesar de um enorme potencial de “desperdício” em ganho clínico imediato e haver falta de conhecimento sobre o que fazer a todos os doentes “contaminados” e por quanto tempo, iremos ter dados mais confiáveis. Note-se que o Rt é variável geograficamente, não dependendo apenas de características do vírus, e tende a aumentar com o aumento de contactos. Uma das questões a que temos de ter resposta brevemente é a seguinte. Quais as medidas, isoladas ou em conjunto, que garantem Rt mais baixo com menores custos sanitários, sociais e económicos? Acima de tudo, por favor, não voltem a negar evidências como a do valor protetor acrescentado das máscaras faciais na população. A literatura esteve sempre toda disponível.

4 Não gosto que me chamem de estúpido. Se o número de infetados tem vindo sempre a subir, não deixa de subir, e a letalidade, em Portugal, é só 4% (seguramente em torno de 1 a 2% se toda a população pudesse ser testada e mesmo que todos os óbitos com SARS-CoV-2 presente fossem registados), então, considerada a evolução temporal habitual da história natural da Covid-19, todos os dias teremos mais “recuperados”. Repito. Aumentam os casos, só um pequeno número morre, a infeção não é crónica – tanto quanto se sabe –, logo, os “recuperados” aumentam. O mais importante no seguimento da “limpeza” do vírus das gargantas infetadas é o tempo que essa “limpeza” demora a ocorrer. Só conhecendo a média temporal da evolução da infeção assintomática e sintomática, teremos uma ideia do tempo exigível para a quarentena dos positivos. E, insisto, já é tempo de se conhecer a demora média dos internamentos por Covid-19, dos internados em unidades de intensivos, a mediana da duração da ventilação assistida e as letalidades em contexto hospitalar. Estes dados são essenciais para podemos comparar desempenhos, identificar desperdícios e desenhar as respostas para o futuro. Só assim saberemos quantos ventiladores farão falta, quantas camas para unidades de intensivos, quantos profissionais e por quanto tempo. E quanto às letalidades e mortalidades, volto a escrever, podemos estar muito errados.

Se conseguíssemos afirmar que todos os mortos, independentemente da causa, fossem testados e considerados como fatalidades da Covid-19, o numerador da razão de letalidade aumentaria. Se tivéssemos a possibilidade de registar todos os portadores de SARS-CoV-2 como tendo Covid-19, o denominador aumentaria. Nada nos garante que estes números variem em paralelo ou, sequer, no mesmo sentido. Logo, para estarmos seguros, o que interessa para avaliar o impacto da pandemia, em termos de mortos, é contar todos (não há como enganar com o SICO) e dividir pela população que, obviamente, está toda em risco de morrer. Para aperfeiçoar o cálculo e não deixar que a composição da pirâmide etária enviese (com mais velhos há mais mortes) use-se uma população padrão. No fim, veja-se se aconteceram desvios. Atenção. Ninguém morre duas vezes e os mais velhos que morrerem de Covid-19 irão ser subtraídos às mortes por outras causas. Logo, interessa conhecer o excesso de mortalidade e relacioná-lo temporalmente com o grassar da pandemia. Irei escrever isto tantas vezes quantas as que demorar até que deixe de ouvir falar em “recuperados”. Falem de altas hospitalares que é bem mais útil. Ou do número de ventilados que ficaram com sequelas.

5 Há quem ande muito satisfeito com o facto de apenas termos usado 54% de uma teórica capacidade de ventilação possível, julgo que no SNS. Foi seguramente melhor do que termos constatado que precisaríamos mais 50% do que estava utilizável. Mas este número não nos informa sobre as capacidades usadas por hospital, cidade ou região. Nem nos diz que não fosse preciso comprar os ventiladores que se compraram. Já chegaram? Funcionam? Parece que as indicações dos botões de controlo vieram em Mandarim. Os livros de instrução também? Quem garante a manutenção dos equipamentos? Faltam 435 da encomenda? Não sabemos se ainda vai ser preciso ventilar mais doentes no futuro. Nado nos garante que estejamos bem em termos de necessidades ventilatórias nacionais e nada nos diz sobre o crescimento da capacidade nacional permanente de cuidados intensivos. Preocupa-me saber que apesar de tanta capacidade ventilatória excedente nos tivesse sido sempre difícil, quase impossível, transferir doentes para hospitais que deveriam ter os tais ventiladores parados. Teremos de saber, brevemente, que ventiladores ficam alocados aos doentes com a ARDS da SARS, quais os critérios nacionais de ventilação não invasiva e invasiva e como será feita a coordenação nacional da capacidade instalada. A quem se deve ligar para alocar um doente a um ventilador? Ao INEM? A prática de estar ao telefone, a ligar para todo o lado, passar longas horas a mendigar uma cama de cuidados intensivos já não deveria acontecer. Ter tido só 54% de ocupação de ventiladores pode ter sido bom ou ter sido desperdício e má planificação.

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