Os números não têm ideologia. São brutalmente claros. E motivam que este texto seja igualmente claro no seu propósito. À hora a que escrevo morreram, em Portugal, 16.086 pessoas de Covid-19. Vidas a mais. Porém, apenas 201 mortes vitimaram pessoas com menos de 50 anos, o tecido vivo de uma sociedade activa. Estes dados, por si só, obrigariam a uma reflexão aprofundada das prioridades governativas — particularmente numa altura em que a vacinação está já em curso. Tal como a análise da doença se faz num xadrez diferenciado, também a bicuda missão de devolver a vida aos cidadãos deveria equacionar o drama humano e económico pelo prisma destes números na hora de resgatar a normalidade da boca do lobo. No caso concreto daquilo que são, grosso modo, “a noite” e os espectáculos, a frustração adensa-se por estarmos a falar de milhares de pessoas que, implícita ou explicitamente, estão proibidas de exercer a sua actividade há quase doze meses. Esse confinamento particular tem tanto de prudente como de deliberado, como adiante veremos.

Para o observador atento, pouco sentido terá feito que autódromos, festivais políticos e recintos religiosos pudessem juntar multidões em determinado momento, mas um bar ou uma discoteca não pudessem receber algumas dezenas de clientes. Neste paradoxo, o diabo está nos detalhes. O Partido Comunista, por exemplo, possui algo que o Governo cobiça. Os DJs e as discotecas não. Somos a punchline da grande piada paternalista e um risco sem qualquer retorno para quem manda. Politicamente, o país que engole um confinamento por causa das escolas, dos transportes e do comércio, jamais o engoliria se o dedo acusador recaísse um segundo que fosse no sector da noite e dos espectáculos.

Ironicamente, esta discriminação negativa sucumbe vítima da sua própria cruzada. Mansamente, o país resvalou para o confinamento que prometera não repetir a reboque das regras que o Governo quis implementar, da mensagem que o Governo quis passar, da inacção que o Governo quis assumir. Mas não o fez, seguramente, por causa de festas, concertos ou discotecas. A movida sai exonerada do descalabro covidiano. Mas pagou-o em incontáveis negócios e empregos perdidos — tudo para voltarmos à estaca zero.

Mandaria o bom senso, por isso, que as pessoas mais castigadas pelo holocausto cultural em curso fossem tidas em especial consideração quando para trás ficasse este Inverno pavoroso. Mas receio estarmos perante um caso em que o péssimo se junta ao mau e entre uma coisa e outra não sobre espaço para qualquer rasgo político ou misericórdia tutelar. Não sendo eu um especialista na matéria, as observações dos dados compelem-me, contudo, a tecer algumas considerações.

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Existem, afinal, argumentos científicos que abonam a favor do sector. A taxa de mortalidade por Covid-19 nas pessoas de 40-49 anos é de 0,1%; de 0,03% no grupo dos 30-39 anos; de 0,009% no dos 20-29 anos (no universo de casos confirmados). São números residuais, que retiram o vírus da órbita da emergência sanitária e o colocam no domínio da responsabilidade individual (desígnio reforçado pelo facto de a maioria destas mortes terem ocorrido entre pessoas com comorbilidades identificadas). Objectivamente, estes são os grupos que frequentam concertos, bares e discotecas. Numa altura em que aumentam as provas de que as vacinas oferecem uma protecção próxima dos 100%, impõe-se a pergunta: haverá legitimidade democrática para se continuar a sufocar a economia da noite uma vez inoculadas as pessoas acima dos 60 anos e com comorbilidades? Ao argumento — legítimo, aliás — de que desatar este nó iria prolongar a transmissão comunitária do vírus, eu contraponho: será pertinente manter restrições tão draconianas neste aparente vácuo de consequências graves, se o mesmo já não puder transbordar para as populações em risco?

Não o faríamos por causa da gripe, não devemos fazê-lo por causa da Covid. A pessoa que isto escreve, contudo, atendeu a todas as indicações sanitárias, escudou-se na máscara religiosamente, ficou em casa tanto quanto pôde, lamentou os mortos. É justo dizer que reconheci desde cedo a gravidade da situação. Não obstante, não permaneço cego ante as dinâmicas pandémicas ou os factos. A tropa do medo absoluto impressiona-me tanto como a do negacionismo zen: nada. É irrazoável apontarmos à meta do risco zero como franquia vinculativa da normalidade. Nem o vírus desaparecerá totalmente, nem todos os braços serão inoculados. Ao tempo para a cautela deve seguir-se outro tempo: o do decisor político. E quando vejo à distância eventos lotados num país insuspeito como a Austrália, ou os horizontes concretos apontados pelo Reino Unido, concluo que aquele é um dogma que pode e deve ser desafiado em nome de direitos e garantias fundamentais.

Tão pouco a reabertura tem que ser feita num desnorte sanitário. Enquanto não se atinge a tão ansiada imunidade de grupo, o uso de máscaras, a medição obrigatória de temperatura, o reforço da ventilação em espaços fechados ou a disponibilização de testes rápidos subsidiados pelo Estado podem opor uma barreira suplementar à transmissão — e, sobretudo, salvar um número crítico de casas e empregos que não podem passar mais um verão em branco. Vias existem, não existe é o estímulo. Quem poderia dá-lo? Uma frente unida de pequenos promotores, artistas e proprietários — os mesmos cujo poder reivindicativo se apresenta nulo, cuja presença junto do lóbi dos grandes festivais não é visível e para quem o recurso à Justiça é um tesouro ainda por descobrir.

O país que se entretém com memes e folhetins à luz do teletrabalho não entende que, para muitos, da prudência à tirania é um passo. E nós — DJs e demais zoologia noctívaga — estamos na calha para provar nova colherada desse xarope amargo. Nesse aspecto, nem sequer estamos no mesmo barco do restante entretenimento. Somos uma colónia de párias atirada para um olvido peninsular sem fim. Abrirão teatros, cinemas, restaurantes, festivais. Abrirão galerias, circos, autódromos, feiras e estádios. Far-se-ão marchas, manifestações, campanhas. Encavalitar-se-á a populaça nos areais da Ericeira e de Quarteira, lubrificada com loção governamental. Tudo antes, sequer, de olharem para nós. #Nãovaificartudobem é o nosso mote — porque é o som vazio que sopra pelos nossos ossos ocos. E o extermínio consuma-se a cada hora, num purgatório de livestreams e caracoladas servidas no dance floor: com carreiras suspensas, empregos obliterados e discotecas — o coração da genuína cultura underground — sentenciadas à morte-por-moratória.

A partir da progressão do vírus e dos dados conhecidos, conseguimos construir uma narrativa plausível para a retoma do entretenimento. A obstinada resistência a estas evidências seria, portanto, uma opção, não só médica, mas política também. E leva-nos a especular sobre se o insaciável lóbi imobiliário, concubinado com o poder político, não terá um interesse acrescido na falência colectiva da noite. Já ao virar da esquina espreita a gentrificação das nossas cidades, pronta a encher o papo a muita offshore

Os dados apresentados são facultados ao público pela Direcção-Geral da Saúde.