Ontem, o Dr. Nuno Melo voltou a insistir num tema que lhe é favorito: a sofrida renúncia a uma candidatura à liderança do CDS, por arcar com o ainda maior sacrifício de se manter como deputado ao Parlamento Europeu. E mete-me de novo ao barulho: o responsável seria eu, porque fui deputado ao Parlamento Europeu e Presidente do CDS ao mesmo tempo e, como ele me atacou por esse facto, não poderia agora fazer o que tanto criticara.

Aconteceu uma vez mais, ontem, no jornal “i”, respigando para notícias online do Observador e do Expresso. O texto relevante da edição em papel do “i” (também publicado, ao fim do dia, na edição ionline) é este:

“Numa conversa por telefone a partir de Estrasburgo, Nuno Melo até fez uma confissão: “Não serei candidato. E digo-lhe com toda a franqueza: não serei candidato porque sou deputado ao Parlamento Europeu e garanto-lhe que já teria apresentado uma candidatura se fosse deputado à Assembleia da República”. A confissão surge com um histórico do passado, quando foi líder parlamentar do CDS-PP e criticou o então presidente do partido, José Ribeiro e Castro, por ser eurodeputado e estar fora do Parlamento. A coerência das críticas do passado dita-lhe a inibição de concorrer.”

Não é a primeira vez que o Dr. Nuno Melo avança este lamento: por um lado, o impulso premente de se candidatar à liderança do CDS-PP; por outro, a maçadora amarra a ataques que me fez, os quais lhe pendem sobre a cabeça como espada de Dâmocles e o acorrentam à pesada cruz de Estrasburgo, impedindo-o de corresponder aos seus desejos e de seus fãs.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando da sucessão de Paulo Portas por Assunção Cristas, em 2016, a historieta foi profusamente declamada: Nuno Melo não podia candidatar-se por causa da história com o Castro e de ser ele, agora, eurodeputado. Uma coerência extremada e o agudo sentido do dever atravessavam-se no caminho para a liderança. Nestes quase quatro anos passados, já não sei quantas vezes ouvi tocar este disco. Sempre que lançava o tema da sua eventual liderança, era simultaneamente travado pelo excruciante conflito metafísico: Presidente? Ou deputado europeu? Ó Europa, por que me amarras assim, de forma tão possessiva e cruel?

Por mim, prontamente declaro a desobriga: não seja por minha causa que o Dr. Nuno Melo não se candidata a líder do CDS. Por mim, pode candidatar-se perfeitamente, que nenhum dedo apontarei a dizer: “Olh’ó deputado europeu! Não querias mais nada…”

É facto que entendo que o Dr. Nuno Melo já devia ter renunciado ao mandato actual, depois do desastroso resultado a que conduziu o partido. Não é castigo, é oportunidade para quem se segue. Continuo a pensar que o devido é renunciar – o que também o aliviaria da cruz de Bruxelas, libertando-o, no seu critério, para se candidatar a líder, como tanto deseja. Aliás, se, após o fracasso de Maio, tivesse logo seguido o meu conselho, renunciando ao mandato europeu e apresentando-se às eleições nacionais, poderia até, com sorte, estar como deputado em S. Bento, preenchendo todas as condições a que aspira. Mas, mesmo se não renunciar, eu jamais direi contra ele a série de disparates que afirmou a respeito de se ser eurodeputado e líder, quando atacou repetidamente a minha liderança.

Quando o ouvi recordar, dez anos depois, este falso dilema, comentei que, infelizmente, não aprendera nada no Parlamento Europeu, o que talvez ajude a explicar o desastroso desempenho na última campanha para as europeias e o fracasso eleitoral e político em que afundou o CDS. Foi o pior resultado de sempre, muito aquém das expectativas que anunciara. E teve efeito catastrófico para as legislativas a seguir. O CDS precisava de um excelente resultado nas europeias (teoricamente mais fáceis) para aspirar a bons resultados nas legislativas (teoricamente mais difíceis). A estratégia da direcção (de que Nuno Melo é o 1.º vice-presidente) colocara o CDS unicamente na esteira da postura galvanizadora da líder do partido, tendo de estar sempre em rota de subida. Basta recordar, na linha “o que vale para as legislativas vale para as europeias, CDS e PSD cada um por si”, as palavras de Nuno Melo, no pré-lançamento das europeias, à beira do 27.º Congresso do CDS: “Se nas eleições europeias pudermos ter mais eurodeputados e se, juntamente com o PSD, pudermos ter mais eurodeputados do que o espaço político do centro-esquerda, então prestaremos um grande serviço ao país” – a leitura de toda a notícia do Observador é importante para colocarmos em perspectiva o que se passou. O estrondo das europeias quebrou o feitiço, despedaçou o encanto, e o CDS jamais se recompôs. As europeias, em vez de rampa de lançamento com Nuno Melo a ponta-de-lança, tornaram-se rampa de declínio. O tombo de Maio precipitou o estoiro de Outubro.

A tese da incompatibilidade entre ser líder do partido e eurodeputado é um disparate completo. Foi inventada apenas para alimentar intriga e servir o antagonismo militante: havia que dizer mal, diga-se mal – se possível, de forma envenenada.

Não fui o primeiro a ser líder de partido e eurodeputado, nem o último. Há outros casos no Parlamento Europeu, como já os houve no passado e haverá no futuro, em diferentes países. Não é o padrão dominante, mas acontece – em cada caso pelas suas razões próprias e nas suas circunstâncias específicas. No CDS, por sinal, os dois líderes que me antecederam foram ambos Presidentes e eurodeputados: Manuel Monteiro, das europeias de 1994 às legislativas de 1995; Paulo Portas, também entre europeias e legislativas, ambas em 1999. Na altura, defendi, aliás, junto de Paulo Portas a ideia de que continuasse mais tempo como eurodeputado, até se atingirem objectivos políticos que só com o líder nas instituições europeias se alcançariam. Se Paulo Portas tem decidido assim, eu não teria ido para eurodeputado. Como ele decidiu vir logo para a Assembleia da República, fui eu substituí-lo em Bruxelas. Trocámos. E, por sinal, o Dr. Nuno Melo veio para deputado em S. Bento, nessa oportunidade, substituindo-me.

O possível problema para um líder não é ser eurodeputado, é não ser deputado na Assembleia da República, o palco mais notório da política nacional. Mas, se o líder não pode ser deputado em São Bento, tendo de aguardar por eleições legislativas, não há ali qualquer problema. Por isso, Manuel Monteiro e Paulo Portas tiveram de esperar pelas legislativas seguintes; e comigo aconteceria o mesmo – foi, aliás, o que aconteceu em 2009, quando eu já não era Presidente.

Um líder partidário, nessa contingência, necessita apenas de ter na bancada parlamentar nacional deputados disponíveis para agir em consonância com a orientação do partido e a liderança, assim como um líder parlamentar leal, cooperante e diligente, capaz de representar o líder do partido e a linha da direcção nacional nos debates e votações principais. Quando as coisas correm assim, não há o menor problema. Mas, se, por não estar na Assembleia da República, o líder é objecto de deslealdades contínuas e ataques traiçoeiros frequentes, as coisas correm mal.  A fonte do problema, porém, não está em Bruxelas, nem Estrasburgo. Está em São Bento e nos sítios onde se instala a oposição interna.

A presença do líder nas instituições europeias pode ser aproveitada como uma vantagem episódica. Como penso e tenho dito repetidas vezes, «Bruxelas e Estrasburgo são também capitais da política portuguesa e Lisboa também é uma capital da política europeia». Enquanto não pensarmos assim e não assimilarmos por inteiro esta nossa dupla condição – pensar a Europa a partir de Portugal, afirmar Portugal no coração da Europa –, continuaremos a falhar e a cair para a cauda da União Europeia e a irrelevância. É espantoso como, 35 anos depois da nossa adesão, continuamos a pensar em modo provinciano, marginal e estrangeiro. Um partido que tenha a oportunidade ocasional de ter o seu líder nas instituições europeias deve aproveitá-la para crescer e amadurecer e tornar-se mais próximo e mais íntimo nos dois sentidos. Agredir essa oportunidade rara é um disparate completo no plano político, revelador de que não se percebe o que é a União Europeia e como aqui devemos estar – como peixe na água.

Tenho a opinião de que esta visão entorpecida do Dr. Nuno Melo, que ainda o atormenta, aflorou muito no fraco desempenho na campanha das europeias. E nos mandatos que já teve. Uma candidatura a um terceiro mandato europeu – o que era inédito no CDS e muito raro nos outros partidos – pressupõe que o candidato teve um desempenho excepcional, digno de registo, nos dois mandatos anteriores. É isso que justifica o encargo de um terceiro mandato, para poder brindar o país e o partido com os frutos e o brilho de tão notáveis realizações. Era, por isso, de esperar que a campanha do CDS se focasse, em larga medida, nos êxitos europeus do experimentado cabeça-de-lista, surgindo com abundância de realizações, grande desembaraço europeu e desenvoltura na afirmação de Portugal nas políticas europeias. Isso seria todo um programa: “já fiz isto; vou consolidar e ainda fazer mais isto”.

Não foi isso que vimos. A campanha do CDS não fez eco de nada do que o cabeça-de-lista tivesse feito nos dois mandatos anteriores, transmitindo a ideia de que nada haveria para apresentar. E atolou-se num pântano de rankings de desempenho no Parlamento Europeu que o colocavam muito mal entre os pares e lançaram a dúvida sobre se fizera pouco ou nada. A campanha, em vez de assentar num capital de sucesso, resvalou, talvez por isso, para bravatas superficiais, algumas desenterradas de 2009, e para um tom de pugilato que pode mobilizar parte das claques (cada vez mais pequenas), mas não atrai o interesse de mais ninguém, e atropelou a melhor iniciativa de campanha do CDS: uma ideia europeia por dia. Houve dias em que nem se percebeu qual era; e, nos poucos em que a ideia europeia do dia ainda furou a nuvem grossa dos faits divers e do discurso agressivo, lá acabava soterrada por fotos de José Sócrates ou outras velharias do baú da paróquia. Europa, zero.

É evidente que o CDS nunca ganharia as eleições europeias. Mas podia ter feito muito melhor. Devia ter feito melhor. Sobretudo precisava disso como etapa essencial no seu roteiro eleitoral.

Renuncie ou não renuncie ao mandato europeu, o Dr. Nuno Melo não deve privar-se de nada. Se aspira a candidatar-se à liderança, deve fazê-lo. Deve jogar fora este disco que tanto toca. Além de desafinado e com letra de fantasia, é um disco já muito riscado. Por mim, renovo a garantia, sob palavra de honra, de nunca invocar contra ele – ou quem quer que seja – uma incompatibilidade entre ser-se Presidente e deputado europeu. Jamais, prometo, cometerei essa estupidez.

Não seria apoiante dessa candidatura à liderança, o que não tem importância. Se o Congresso a escolhesse, assim seria. Se não escolhesse, seria sempre positivo ver o Dr. Nuno Melo, um especialista reconhecido do “fogo amigo que também mata” e com longo currículo de balcanização, a seguir o guião inverso e a unir em vez de fracturar. Procurar o bem nunca fez mal, mesmo quando não ganhamos. E, num partido atirado para tão baixo e que vive tantas dificuldades, não seria mau que se encontrassem bons patamares comuns, métodos rectos e rumo claro.