Capítulo primeiro: rendição e recuo

Há uma história que vale a pena contar: durante a guerra de libertação americana, depois de uma séria de derrotas, o general George Washington percebeu uma coisa crucial: que ao consultar os seus desejos em vez da sua razão, poderia ser apressado pela impaciência a alcançar algo glorioso através de dificuldades insuperáveis. Converteu-se por isso à arte da rendição e do recuo e fez do exército continental uma poderosa força de resistência.

Mais tarde, após a vitória sobre os ingleses, e face à questão de saber como havia o país de ser governado, Washington – tendo podido tornar-se rei ou tirano das colónias, aclamado e adulado -, resistiu a impor a sua visão de uma união federal forte e livre e entregou ao Congresso o poder que lhe fora confiado, suscitando até a admiração do seu arquirrival, o rei inglês Jorge III. Os tempos deram lugar aos tempos e Washington viveu para ver a vitória da república e ser o primeiro Presidente dos Estados Unidos, que o coroaram “pai da Nação”.

Capitulo segundo: que fazer com esta derrota?

Na noite eleitoral, António Costa tinha essencialmente um de quatro caminhos a percorrer: a demissão; a viabilização, pela abstenção, de um governo dos vencedores e a assunção de um papel de oposição construtiva, atenta e actuante; a proposta (ou a aceitação da proposta) de um governo com PSD e PP, estabelecendo claras linhas vermelhas à governação; ou a fuga em frente, tentando constituir uma maioria de esquerda estável – espécie de oximoro nas presentes circunstâncias políticas do país.

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Terá Costa pensado que esses caminhos se cruzavam? Pensado por exemplo que podia tentar (que pode tentar…) um governo de esquerda e depois, falhado este, se falhar, estudar uma hipótese de governo com a coligação, ou até a oposição construtiva, descartando a demissão? Pensar pode ou podia, mas com um pequeno óbice: o partido. Sabe Costa e sabe o país que, depois do resultado eleitoral, o PS lhe perdoará muito pouco. E que o único caminho garante da sua sobrevivência política (infelizmente, na minha opinião, a prazo) é o da maioria de esquerda.

George Washington, com o seu pequeno exército de patriotas americanos, recuou para vencer no fim. Costa, impaciente, atacou de frente a governação; será sua a glória da constituição do primeiro governo estável de esquerda em Portugal, com comunistas e bloquistas (ou com a participação destes e o apoio daqueles)? Rendição e recuo…

Capítulo terceiro: O que é justo é mau e o que é mau é justo

Três irmãs que não parecem “criaturas da terra” profetizam ao general Macbeth, vitorioso cabo-de-guerra do rei da Escócia Duncan, que em breve receberá o baronato de Cawder e que, pouco tempo depois, se tornará rei da Escócia. Mas Duncan vive, goza de boa saúde; Macbeth duvida. Recebe entretanto a notícia de lhe ter sido outorgado pelo rei o baronato de Cawder, cujo titular foi executado por traição. Na peça de Shakespeare, em que nada é o que parece – “fair is foul and foul is fair” (o bom, ou o justo, é abominável ou mau e vice-versa) dizem as irmãs bruxas – é a ambição de Lady Macbeth, vilã suprema da literatura, que leva Macbeth ao regicídio. E à sua própria perdição, depois de um curto período de reinado como usurpador. No final, Malcom, filho de Duncan, torna-se o legítimo rei da Escócia.

Barão de Cawder, Macbeth quis mais, muito mais – e depressa. O que é mau é bom?

Capítulo quarto: a esquerda convergirá?

Tudo pode ainda acontecer. Mas dificilmente será o que António Costa quer. Não porque não seja possível: já vimos coligações mais estranhas (Syriza com os Gregos Independentes); não por Bloco e PCP serem contra a Nato, o euro, a austeridade: tudo se negoceia, afinal, e o poder é atractivo; não porque uma coligação à esquerda viole os resultados eleitorais, seja um “golpe de Estado” como alguns dramaticamente lhe chamaram, represente um entorse à Constituição: nada o proíbe e a interpretação dos resultados depende afinal, constitucionalmente, dos partidos (e do Presidente da República, mas essa é outra questão).

Tudo pode ainda acontecer mas dificilmente será o que António Costa quis, porque a sua ambição e a dos líderes e militantes do Bloco e do PCP não convergem, porque se Costa quer ser rei da Escócia, Catarina e Jerónimo querem determinar o que ele pode ou não fazer, se não de imediato pelo menos num prazo curto, e se estão dispostos a deixar que o faça é apenas porque não gostam do actual rei da Escócia. O Bloco já decidiu negociar sem prazos nem condições específicas, mas resta a dúvida: “fair” ou “foul”? E o PCP? Que consistência terá um governo desses?

Capítulo quinto: A palavra dos anjos

Escreveu Abraham Lincoln: “eu faço o melhor que sei, o melhor que posso, e pretendo continuar a fazê-lo até ao fim. Se o fim provar que estou certo, o que é dito contra mim não terá qualquer importância. Se o fim provar que estou errado, dez anjos a jurar que eu estava certo não farão qualquer diferença”.

Capítulo sexto: o erro de António Costa

Na noite das eleições, Costa tinha 4 caminhos: um de abandono incondicional – a demissão -, outro de fuga em frente (o que adoptou). Os 2 restantes, de recuo e rendição, eram ambos viáveis e dar-lhe-iam uma hipótese de sobrevivência no anunciado Congresso socialista: mas para isso teriam de ter sido a primeira escolha (ou quase), acompanhados por uma clara mensagem de rendição e recuo: na oposição o PS, de quem a governação dependeria decisivamente, colocaria o governo perante as suas responsabilidades, marcaria as políticas (limitaria a austeridade), cúmplice com o povo português, atento aos abusos, infinitamente mais eficaz e poderoso do que metido no colete-de-forças de uma coligação contra-natura.

O PS teria saído reforçado dessa escolha. Poderia Costa sobreviver no seio do partido? Talvez. Mas se falhar o governo de esquerda, ou se durar um tempo curto, nem mil anjos a jurar pelo secretário-geral do PS farão qualquer diferença.