Enquanto o Reino desunido continua sem rumo de votação em votação, às voltas com a funesta decisão do Brexit, acabámos de assistir domingo passado ao terceiro dos quatro actos previstos para a renovação política do segundo maior país da UE, a França. Conforme as sondagens proclamavam, o primeiro turno foi ganho por Emmanuel Macron e, antes mesmo de ser eleito presidente no segundo turno, já um novo estudo muito bem feito vaticinava que o movimento partidário criado por Macron há pouquíssimo tempo seria, segundo toda a probabilidade, o grande vencedor das eleições legislativas a realizar em Junho.

Curiosamente, os media continuavam a especular no vazio, ignorando as sondagens publicadas. Seria ignorância ou dor de cotovelo? A verdade é que o primeiro turno das legislativas confirmou a previsão de que o novo presidente francês gozará daqui a uma semana de um parlamento feito, virtualmente, à sua medida para os próximos cinco anos. E antes mesmo de encerrar o quarto acto desta renovação política no domingo que vem, já anunciou grande parte das medidas que o novo governo, constituído entretanto, tenciona tomar nos próximos anos.

Segundo um excelente artigo de Jorge Almeida Fernandes anterior à votação de domingo , trata-se em França da emergência de um novo sistema partidário, coisa que em si mesma pouco nos diz de concreto quanto às políticas a seguir pela França e à sua inserção na EU; mas sobretudo classifica este novo projecto político como algo destinado, porventura, a superar as ideologias bloqueadas em torno do eixo esquerda-direita, em suma, uma proposta simultaneamente progressista e liberal.

Precisamente, os dois valores tornados incompatíveis por esses fósseis ideológicos, tanto mais extremados quanto partilham idêntico receio da UE, em que as chamadas “direita” e “esquerda” se tornaram após a grande recessão de 2007 que apanhou a UE em plena construção da sua unidade monetária. Cultural e politicamente progressista a par de financeira e economicamente liberal – eis a fórmula por ensaiar de modo consciente e acelerado pela UE (e que me recorda a ideia de um pequeno grupo que há mais de 30 anos avançou, então, com o nome de “esquerda liberal”…) – eis a proposta de Macron e da sua coligação no futuro parlamento francês.

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Para além de todas as sombras que pesam sobre um tal projecto anti-soberanista, comunitário mas regrado pelas normas da concorrência global, dois óbices maiores se apresentam já. Um é bem conhecido dos portugueses, a saber, o abstencionismo maciço dos eleitorados: a França ultrapassou domingo passado os mesmos 50% de abstenção que houve em Portugal nas últimas presidenciais.

Ora, se alguns desses eleitores que ficam em casa ou anulam o seu boletim de voto se devem em parte ao facto de anteciparem os resultados anunciados pelos media e desistirem de votar, muitos outros – seria necessário saber isso de cada vez – manifestam-se, sim, contra aquilo que a literatura tem chamado a “crise de representação”, ou seja, o facto de altas percentagens de eleitores não se reconhecerem nos partidos e/ou candidatos que têm pela frente. Esta crise é endémica. A democracia é, como dizia Danilo Zolo, um sistema de selecção de elites demasiado grosseiro para democracias cada vez mais complexas (Democracy and complexity – a realist approach, 1992). De então para cá, a abstenção raramente tem diminuído e os processos de “primárias” nos partidos só têm contribuído para tornar as eleições gerais mais opacas para a maioria do eleitorado não comprometido. O futuro dirá o que se passou exactamente em França nestas votações sucessivas em função do próprio sistema eleitoral…

O outro obstáculo a um programa simultaneamente progressista e liberal, dependendo dos temas em causa, situa-se para além da legitimidade eleitoral: é a “rua”, ou seja, a resistência daqueles que se julgarem lesados pelas novas medidas. Ora, Macron colocou como os seus dois principais temas para iniciar uma renovação progressista do sistema sócio-económico francês no quadro da construção da moeda comunitária, a legislação do trabalho e o sistema de reformas à luz da modernização tecnológica e profissional bem como da evolução demográfica.

Ora, a nova extrema-esquerda, mas também uma parte da extrema-direita, já deram a entender que combateriam tais liberalizações na “rua”… Resta saber até que ponto essas forças partidárias serão seguidas pelos descontentes e de que modo os novos eleitos encararão a reacção de uma parte relevante do eleitorado. Seja como for, a França propõe-se não só reformar o seu modo de funcionamento como consolidar a comunidade europeia. É, pois, um excelente augúrio para os europeístas. Em comparação, Portugal parece um país rico que se pode permitir o luxo de uma política de estatização sistemática e de fidelização do eleitorado enquanto a sua dívida externa aumenta todos os dias… Qual será o país menos clientelar e mais europeísta: Portugal ou a França?