Todas as pessoas minimamente informadas têm consciência de que existe de novo, como já existira no tempo de Sócrates, uma rede mais ou menos organizada, possivelmente funcionalizada e paga, cuja missão é garantir a bem oleada propaganda governamental, bem para lá do habitual noticiário assegurado pelos meios de comunicação social. Em tempo de eleições, como aquele que decorre neste momento para as autarquias, o papel dessa rede sente-se ainda mais e infiltra-se, quer os agentes jornalísticos tenham plena consciência disso ou não, em todos os domínios.

Um dos mais importantes domínios dessa propaganda é o fisco, no caso, as repetidas promessas imediatas, futuras e mesmo longínquas de diminuição do IRS feitas pelo governo a propósito de tudo e de nada. Mais surpreendente é o facto de ser, desta vez, a publicação com maior influência porventura junto da chamada “classe média”, ou seja, da “opinião pública informada” do país, desde a “classe política” ao funcionalismo estatal e às organizações privadas de maior peso, a desempenhar esse papel de pregoeiro das promessas governamentais! Estou a falar do Expresso que, na semana passada (2 de Setembro), começava por anunciar com grande destaque na primeira página que “Mais famílias vão ficar isentas de pagar IRS” e remetia o anunciado “alívio fiscal” para duas páginas inteiras no suplemento de Economia (págs. 6-7). Talvez não seja por acaso que não consegui o link! Com efeito, a forma como a notícia pretende ser propagandeada nessas duas páginas, alegadamente fundamentadas em fonte da Autoridade Tributária relativa a Outubro de 2015 (?), cai pela base, ao perguntar retoricamente num grande gráfico central: “Quem paga os €10 mil milhões de IRS que todos os anos entram nos cofres do Estado?”. Acontece, porém, que desde a virtual bancarrota de 2011 as receitas anuais do IRS ultrapassaram os €12.000 milhões e aí se têm mantido, havendo chegado a €12.850 milhões no auge da crise.

A partir daqui, todos os cálculos passados e futuros ficam sujeitos a enormes dúvidas, nomeadamente quanto às pessoas que não pagam IRS de todo, as quais são, como se sabe, cerca de metade dos declarantes. Este facto justificou aliás a afirmação de várias personalidades segundo as quais “todos deviam pagar imposto”. Na origem da fundação dos Estados Unidos, dizia-se “No taxation without representation!” e Miguel Sousa Tavares tem alguma razão ao sugerir o inverso…

Com efeito, pessoas com rendimentos tão baixos que nem são taxados, dispensadas que já estão de pagar imposto sobre o auto-consumo do qual são os principais utilizadores, tendem a constituir um eleitorado facilmente capturado pelo Estado, ou seja, o governo do dia! Tudo começa, aliás, com o número de declarações fiscais e quem são os declarantes… Com efeito, faz parte da demagogia fiscal do governo, correntemente veiculada pelo Expresso e pelos outros meios de comunicação social, falar de “famílias”, entidade que soa sempre bem ao ouvido, por exemplo no sub-título: “Costa promete poupanças no IRS de €200 milhões às famílias portuguesas”. Isto já levou um deputado socialista arrebatado a prometer descontos a 5.600.000 “famílias”… Ora, não há em Portugal tal coisa: quando muito, há hoje 4 milhões de agregados domésticos, incluindo já perto de 1 milhão de pessoas isoladas e outrotanto de casais sem filhos, os quais, segundo determinada sociologia, não constituiriam uma família propriamente dita, além de que cada vez mais os seus membros fazem declarações separadas…

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A partir daqui, se nem o numerador (IRS) nem o denominador (declarações) das estatísticas invocadas pelo Expresso são fiáveis, nenhum cálculo é fiável, por muito bem que soe aos ouvidos do público bem pensante essa ideia aparentemente caridosa da família pobre que todos devemos ajudar dispensando-a de pagar os impostos…

Ora, não é nada disso que está efectivamente em jogo na campanha propagandística do governo sobre o IRS, embora seja verdade que é este imposto aquela que parece atingir-nos mais directamente e é isso mesmo que a publicidade do governo pretende manipular. Na realidade, porém, os impostos indirectos, como o IVA, são aqueles que mais ferem em percentagem os consumidores com baixos rendimentos e, embora tenham aumentado menos do que o IRS graças à intervenção do governo PSD+CDS, continuam não só a ser superiores aos impostos directos como atingem a população de forma muito mais desigual do que estes últimos.

O insuspeito Professor Carlos Farinha, que é a maior autoridade em Portugal sobre as desigualdades económicas, mostrou aliás no seu último trabalho que foi o grande aumento do IRS durante o governo Passos Coelho que impediu praticamente a distribuição dos rendimentos de aumentar durante esses anos. Na realidade, aquilo que se está a preparar com a demagogia governamental e a propaganda jornalística é um aumento relativo dos impostos indirectos em relação ao IRS, já que continuará a ser necessário conter o défice orçamental, de tal modo que, no final, as desigualdades tenderão a aumentar e não a diminuir!