Há coisas extraordinárias. Lendo alguns títulos e ouvindo alguns comentários à aprovação pelo Tribunal Constitucional da CES, parece que a Contribuição Extraordinária de Solidariedade só passou no crivo dos juízes por, imaginem lá, ser extraordinária.

Sim, é verdade: um dos critérios dos juízes para considerarem constitucional a CES de 2014 foi ela vir explicitamente apresentada como sendo transitória “na Nota Explicativa do Governo e no Documento de Estratégia Orçamental 2014-2018”. Só que não foi o único critério, longe disso.

Há um motivo para esse tipo de reacção e para essa forma limitada de dar a informação sobre a decisão do Constitucional: é o desejo de ver chumbada a nova Contribuição de Sustentabilidade que o Presidente enviou hoje para apreciação dos juízes. Não por esta implicar um encargo menor para os pensionistas, como vai representar, mas por deixar de ser “extraordinária” e “transitória”.

A questão é, no entanto, bem mais complexa e exige uma leitura mais atenta de um Acórdão que, desta vez, procura fazer o que o anterior (relativa aos cortes salariais na administração pública) não fazia: dar pistas aos legisladores relativas às balizas constitucionais do que podem ou não podem fazer.

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Primeiro que tudo: o que é que o TC disse sobre o que se pode fazer para o ano? Uma coisa simples: “os pensionistas atingidos por esse alargamento [da CES] sabem que (…) a contribuição já não será renovada no próximo ano, podendo manter ainda algum nível de expectativas de estabilidade e continuidade que possuíam antes da afetação”. As duas palavras chave desta frase são “ainda” e “algum”: com elas os juízes não fecham a porta a uma nova contribuição, apenas sublinham a expectativa de que esta represente uma menor afetação de recursos por parte dos pensionistas. Digamos que, no mínimo, a porta fica entreaberta para a nova Contribuição de Sustentabilidade.

Se era assim que terminava o parágrafo relativo à transitoriedade da CES, o parágrafo seguinte do acórdão desenvolve uma lógica que me parece situar os termos do próximo debate constitucional.

Um dos argumentos centrais à contestação de qualquer contribuição a aplicar sobre as pensões parte da ideia de que essa taxa não tem, por definição, uma relação directa com as carreiras contributivas, isto é, com os descontos feitos ao longo da vida. É o argumento central à declaração de voto de Pedro Machete, por exemplo. O caminho seguido pela maioria dos juízes foi outro.

Primeiro, os juízes lembraram duas coisas: que o nosso sistema previdencial se baseia “no princípio contributivo ou de autofinanciamento” (sublinhado do próprio TC) e que “a generalidade dos contribuintes é convocada, através dos impostos, a contribuir para o financiamento do sistema”. Ou seja, que o autofinanciamento é insuficiente e que, por isso, é preciso ir ter com os contribuintes. Ora se isso é feito, acrescenta o TC, “não é excessivo ou desproporcional que alguns dos beneficiários (…) possam também contribuir para aquele financiamento”.

Tenho sido muito crítico de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, mas parece-me que desta vez os juízes tiveram mais preocupação com a realidade. De resto até lembraram um acórdão anterior em que se citava o “princípio da necessidade”, um princípio que, do meu ponto de vista esqueceram noutras deliberações. Mais: ao avaliarem “necessidade” da nova CES, os juízes lembraram que uma sua anterior decisão – o chumbo da convergência das pensões – criara um buraco ao Governo e que não se podia analisar esta medida ignorando que existiam essas necessidades financeiras. Bem vindos pois ao mundo real.

Há mais passagens deste último acórdão que me parecem distanciarem-se da forma, do tom, porventura até da doutrina recente do TC, mas parece-me claro que os juízes não quiseram fechar o caminho a qualquer alternativa à CES, como alguns sugeriram, antes abriram alguns caminhos que, agora, veremos se são ou não percorridos. Primeiro, que os pensionistas podem ter alguma expectativa de recuperarem a totalidade das suas pensões, mas só “alguma”, o que talvez permita que aprovem uma contribuição definitiva mas mais baixa. Depois, que é razoável pedir aos pensionistas que contribuam para o financiamento do sistema de pensões num momento em que o seu autofinanciamento não está assegurado. Finalmente que, em períodos de urgência económica, se pode também aplicar à avaliação da constitucionalidade das leis um princípio de necessidade.

Vai por isso ser curioso, e importante, verificar se o Tribunal vai seguir estas linhas que ele próprio definiu na apreciação que terá de fazer das leis que o Presidente acaba de lhe enviar, sobretudo na relativa à Contribuição de Sustentabilidade.

De facto, se a excepcionalidade se aceita, a verdade é que a única coisa que é realmente excepcional em Portugal, porque nunca aconteceu em 40 anos de democracia, são contas públicas equilibradas.

PS. Desta vez o Tribunal Constitucional não fez conferência de imprensa. É, se a memória não me falha, a segunda vez que isso acontece. A outra foi no diploma das 40 horas da função pública, que também foi aprovado. Em todos os diplomas chumbados tivemos direito a conversa com os jornalistas. Estranho, no mínimo. Pior do que estranho, inquietante, pois parece indiciar uma certa vontade de fazer política, melhor, de fazer oposição. Não imagino outro tribunal idêntico numa democracia moderna que tenha, ou sequer imagine ter, esta dualidade de critérios e comportamentos.