Há um vastíssimo número de portugueses que vê os partidos políticos de fora, sem a sombra de uma ideia de intervir nas suas actividades, e eu pertenço alegremente a esse número. Mais: o funcionamento interno dos partidos permanece-me quase inteiramente ininteligível e o conhecimento dos seus meandros não é um saber a que aspire algum dia atingir. Exactamente como a maioria dos portugueses. Acresce a isto que não possuo nenhuma doutrina geral sobre como a sociedade deve ser, excepção feita a algumas poucas ideias gerais que, pelo menos nominalmente, são partilhadas por praticamente toda a gente. O que me retira, à partida, qualquer possibilidade de me entusiasmar com grandes visões de um magnífico futuro a vir. Também nisto estou, de certeza, como a quase totalidade dos portugueses.

Teoricamente, podia votar em qualquer dos três partidos democráticos do regime (PSD, PS e CDS). E já votei. Sem qualquer sentimento de identificação e tendo apenas por vago princípio a escolha daquilo que, em determinada conjuntura, me parecia um mal menor. Não é, admito, um critério sublime, mas é indiscutivelmente legítimo e, de resto, ajuda a evitar desilusões maiores. Mais precisamente: ajuda a evitar os costumeiros desgostos com a célebre traição dos ideais.

Estas reflexões banalíssimas têm a ver com as toneladas de papel escritas a propósito das “primárias” do PSD e da luta entre Santana Lopes e Rui Rio. Não morro de amores nem de ódios por nenhum deles, ambos tendo qualidades louváveis e defeitos conhecidos. Mas não foi tanto o que eles disseram como aquilo que sobre eles foi dito que me interessou. Sobretudo a ideia muito propalada segundo a qual se assistiria a uma luta entre “direita” e “esquerda” no interior do PSD, senão no plano doutrinal, pelo menos no das chamadas ”sensibilidades”.

Apresso-me a dizer que nada tenho contra o uso corrente deste vocabulário, apesar de ele se prestar às maiores mistificações e, muitas vezes, tender a obscurecer os debates mais do que a iluminá-los. Mas as pessoas, para se orientarem nestas coisas, precisam de sinais simplificadores: no discurso comum, as palavras fazem sentido. O problema aqui, parece-me, é que a utilização da dicotomia ignora por completo a única coisa que o PSD pode apresentar como razão para merecer alguma atenção por parte dos portugueses. Contra o PS, cujas forças mais significativas e dominantes desde há muito militam por uma cada vez mais insistente presença do Estado no interior da sociedade, o PSD representa a vocação, é verdade que tímida e trôpega, para uma certa liberalização da nossa vida social.

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Aqui uma explicação é necessária. O “liberalismo” tem, é o mínimo que se pode dizer, má imprensa. “Selvagem” costuma vir logo a seguir. E a sua apresentação pública ajuda muito, porque parece que tudo se reduz a um feroz combate entre os adeptos do chamado “Estado mínimo” e aqueles que defendem um Estado alargado e com um peso determinante na sociedade. Ora isto, se me é permitido, é uma caricatura. O debate sobre o peso do Estado na sociedade é um debate político estrutural, mas há um sem-número de posições possíveis e articuladas na matéria. Ver as coisas assim, a preto e branco, roça o grotesco. Mas é no plano desse grotesco que as discussões normalmente têm lugar.

O liberalismo, na acepção que vale a pena dar ao termo, na acepção que lhe deram alguns dos mais eminentes pensadores políticos do século XIX, traz certamente consigo a crítica de um Estado omnipresente, mas tal crítica não implica de modo algum uma recusa do papel do Estado na sociedade. Sobretudo, não implica, ao contrário do que a cartilha caricatural pretende, a decisão de considerar irrelevante toda e qualquer reflexão sobre a justiça, a igualdade (digo bem: igualdade) e a defesa dos direitos dos mais desmunidos. No limite, o liberalismo é compatível com uma certa social-democracia: a expressão “social-democracia liberal” não é certamente um oxímoro. Trata-se antes de uma atitude geral, que pretende preservar o máximo de liberdade e de diversidade na comunidade social e o maior respeito pelas diferenças individuais. Dentro dessa atitude, cada um pode buscar a sua coerência própria, isto é, pode (e deve) procurar a continuidade entre aquilo que no passado pensou e aquilo que o horizonte actual permite. O que interessa é a atitude geral e os reflexos políticos que a atitude geral traz consigo.

Mas voltemos ao PSD. O PSD é certamente o partido mais inestético de Portugal. O seu primeiro nome, PPD, tem qualquer coisa de pouco entusiasmante. As setinhas, convenhamos, são feias. Isto para não falar de um hino que junta “paz, pão, povo e liberdade” (o “povo” a seguir ao “pão” sugere a natureza alimentícia do primeiro). Não há nada aqui que se compare com o vasto fresco histórico que qualquer dirigente socialista pode pintar, viajando séculos, para justificar a mais indiferente acção presente. Ao mesmo tempo, os principais chefes do PSD – Sá Carneiro, Cavaco Silva e Passos Coelho – contam-se sem dúvida, em conjunturas muito diversas e com características pessoais igualmente diversas, entre aqueles que mais procuraram liberalizar a sociedade, no sentido de “liberalizar” que apontei antes. E é isso que importa, não os fatinhos vestidos da bela tradição.

Há descontinuidades? Claro que há. Mas isso em nada permite que se oponha, como agora se faz, um demonizado Passos a um magnificamente virtuoso Sá-Carneiro, de impecáveis pergaminhos social-democratas. Primeiro, porque Passos Coelho agiu em circunstâncias precisas com uma admirável coragem para nos tirar do poço onde um primeiro-ministro socialista, é preciso dizê-lo, nos deixou. O que devemos à sua tenacidade é muito e merece ser repetido. Depois, porque a imagem que por aí circula de Sá Carneiro não é mais do que uma impostura ditada por interesses políticos imediatos. A social-democracia de Sá-Carneiro era respeitada em tempos de sua vida por muitos daqueles que agora a homenageiam? Basta lembrar a primitiva AD. Lembrar, sobretudo, como tudo aquilo – e Sá Carneiro em primeiro lugar – era “fascista”. E não era só a língua de pau do PC que falava assim. Era a de muita, muita, outra gente. Pessoalmente, lembro-me melhor do que queria, até porque era novo na altura e ainda me surpreendia facilmente. Quem não se lembre, é ir ver os jornais da época.

PSD de esquerda ou de direita? Deixem-se disso. Um PSD mesmo que muito moderadamente liberalizador é que interessa. Mesmo com a evolução das sociedades em geral no sentido de uma cada vez maior infantilização dos indivíduos por um estado tutelar, algo ainda é possível. E cada vez mais necessário, já que o PS desde há muito parece ter optado pelo caminho inverso. Não digo que tenha de ser sempre assim. Mas, a julgar pelo que se vê, as possibilidades de deixar de ser assim são remotas.