No instante em que vos escrevo discute-se o que aconteceu com o Banco Internacional do Funchal (BANIF). O banco foi obra de Horácio Roque, um daqueles homens que, apesar de o país não o merecer, sempre lutou por ele. Nunca foi um banco grande, nunca esteve no top 3, mas esteve sempre presente. Dos seus funcionários, quer da banca de retalho, quer da banca de investimento, só me ouvirão elogios.

A verdade é que poderia dizer isto de todos os bancos portugueses e de muitos dos estrangeiros que conheço. E todos eles passam pelas mesmas dificuldades. Ao fim de séculos e séculos, um negócio que vem do tempo em que os fenícios cruzavam o mediterrâneo, que sobreviveu a todas as guerras, a todas as catástrofes, a todas as revoluções, parece atingir o seu ocaso. Porque a necessidade acabou? Não, continua a haver necessidade de trazer o capital de onde ele existe para onde ele é necessário. Continua a haver necessidade de ligar os meios de troca e o trabalho para que a economia funcione.

Então, o que levou o BANIF (e o BCP, a CGD, o BES, o….) a precisar de intervenção do estado? O que traz o Barclays, o UBS, o Credit Suisse, o Deutsche Bank a quererem acabar com as áreas de banca de retalho (aquela que eu e você usamos) e passarem a apostar na banca de investimento (a que lida com especulação de ações, derivados, dívida pública, etc.)? A estupidez de reguladores ignorantes. A resposta é simples, mas a explicação é mais complicada.

Na verdade, nem o BES, nem o BANIF faliram. Nenhum deles tinha, aliás, atingido capitais próprios negativos como atingiram, muito possivelmente, todas as outras empresas com que o caro leitor lida todos os dias. O que aconteceu é que existe uma lei bancária, emanada do comité de bancos centrais quase-global, que impõem que os capitais próprios dos bancos sejam, grosso modo, 8% (10%, no caso português depois da intervenção da troika, creio) do montante que emprestam. O BES, quando foi intervencionado tinha 5%. Porquê? Alegam os reguladores que os bancos, assim, promovem uma almofada de dinheiro para defender o sistema de colapsos. Parece lógico, não é? Mas é mentira. A mais pura mentira.

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Primeiro, não há uma única razão objetiva para o valor de 8%. Na verdade, ninguém sabe hoje porquê 8%, porque não 5%, ou 2%, ou 90%. Um dia definiu-se 8% porque uns quantos países já tinham definido internamente uma percentagem e resolveu-se fixar os 8%. Uma das exigências que o governo da república continua sem fazer ao Banco de Portugal é a explicação cabal, de sustentação científica clara, da razão pela qual o nível de fundos próprios tem o valor que tem. Afinal, se o contribuinte está lá a meter o dinheiro para cumprir esse nível é porque há uma justificação concreta, certo?

Segundo, os bancos são agentes económicos que não se relacionam com a envolvente de forma aleatória. Nenhum agente económico é. O caro leitor não vai com a mesma probabilidade ao hipermercado que vai ao barbeiro da sua rua. Tal como não vai com igual probabilidade a todos os bancos. É mais provável que vá à CGD, a seguir ao BCP, etc. O que significa que a almofada que os reguladores dizem formar-se, não protege em nada o sistema. Isto porque se cair um dos grandes a reação será em cadeia, levando atrás todos os bancos independentemente da suposta almofada, que só funcionaria se os bancos fossem todos da mesma dimensão e se relacionassem “ao calhas”. Isto demonstra-se matematicamente e a realidade mostra-o à exaustão.

Terceiro, não bastando o facto de a imposição da almofada ser inútil para a proteção do sistema financeiro, consegue provar-se matematicamente que é errada. A ideia de que existe a necessidade dessa almofada deriva do mundo financeiro onde os diversos ativos têm preços a flutuar de forma que existem sempre perdas esperadas e inesperadas, no sentido estatístico. Digamos que se perder dentro da média será esperado, se perder muito para lá da média, será inesperado. A almofada serve para cobrir a eventualidade dessas perdas inesperadas, já que as esperadas são cobertas pelos ganhos esperados.

Os reguladores bancários caíram na asneira quase infantil de fazer o mesmo com os ativos dos bancos de retalho, isto é, os empréstimos que os bancos fazem a si e a mim. E a asneira é infantil porque ignora que um banco de retalho não diversifica os seus ativos só pelo tipo, mas também pelo tempo. Em termos financeiros, a carteira do banco de retalho está sempre a ser renovada à medida que os créditos existentes vão andando. Matematicamente, isto faz toda a diferença do mundo, quer naquilo que é a perda esperada da totalidade da carteira quer aquilo que é a perda inesperada. Esta, em condições normais de diversificação por cliente (não emprestar tudo ao mesmo), é praticamente zero. Isto significa que, ao contrário dos outros negócios, se calhar a banca de retalho é mesmo aquele em que leis de imposição de almofadas fazem menos sentido.

Podemos fazer todas as considerações morais sobre a forma como a administração do BES lidou com a falta de almofada, mas o ter almofada não servia para nada que não satisfazer amanuenses sentados nos bancos centrais. Em termos económicos, o BES não faliu. Mas a decisão administrativa de o tornar falido custou-nos a todos nós muito dinheiro. A injeção de capital que a troika destinou a montar almofadas nos bancos chegava a 12 mil milhões de euros – cerca de um sétimo de todo o resgate. E para quê? Para satisfazer uma lei que está errada no seu objetivo.

Mas quem ganha com a “falência” dos bancos? O primeiro beneficiado é o burocrata do BCE e das respetivas filiais, Banco de Portugal incluído. A realidade é que o sistema financeiro hoje serve para fazer dos reguladores bem pagos e dos bancários despedidos. Hoje, milhares de “controladores” e auditores por essa Europa inventam novas regras, novos métodos, novos testes, tudo baseado nos mesmos princípios pseudo-científicos. Não tenho dados sobre o incremento de funcionários na regulação bancária europeia, mas se passou para 5 ou 6 vezes daquilo que era antes, não me surpreenderia. E à medida que crescem estes membros colaterais do sistema financeiro, vai desaparecendo o próprio sistema.

Se os maiores bancos da Europa se viram para a banca de investimento, isso é um sinal de rara clareza para si, caro leitor. Os bancos não o querem como cliente. Deste custo, imagino que não se tenha lembrado.

Se houve candidatos à compra do BANIF imagino que ainda há quem tenha esperança que a banca em euros não vá morrer tão cedo. Eu não tenho essa certeza toda. Certeza tenho que vai desaparecer mais um banco, com empregados competentes e um historial impecável, sem que exista uma razão económica para isso. É um simples desbaratar de recursos, neste caso públicos e privados. É uma perda para o país, mas, aparentemente, haverá quem ganhe com isto nos gabinetes improdutivos da regulação portuguesa e europeia. E, a avaliar pela reação das autoridades nacionais, há quem ache isto perfeitamente normal.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer