A Rússia é uma federação de 22 repúblicas, 46 regiões autónomas, 160 etnias diferentes, 100 línguas, quatro grandes religiões e uma população de 140 milhões de habitantes. A tudo isto chamamos Rússia, um Império extenso com mais de 17 milhões de Km2, que corresponde a cerca de 1/9 da litosfera continental terrestre.

Esse colosso com uma história de 1200 anos, que cruza três impérios, a Rus Kieviana; a Rússia Moscovita e dos Czares; e a Rússia Soviética, iniciou nas últimas duas década o seu mais recente período, um quarto império, o da Rússia de Putin ou “Novorossia”. Este quarto império, com raízes no imaginário popular russo, está personificado no “filósofo” e “historiador” Vladimir Putin, como o líder de um império de um conservadorismo identitário, um império que se alimenta, cresce e sustenta na exploração de amplas reservas de matérias primas, numa riqueza agrícola cada vez mais acentuada pelas alterações climáticas, e numa indústria quase exclusivamente orientada para a guerra. Este líder, é líder de um império que quer ser mais que um império. É líder de uma ideia, a ideia de uma Eurásia, uma Eurásia centrada nos valores de uma Rússia conservadora e ortodoxa, uma Rússia forte, imperial, um contrapoder a um ocidente cada vez mais decadente.

No livro Na cabeça de Putin, Michel Eitchaninoff faz uma viagem pelo universo interior de Putin, tentando sondar o seu pensamento. Com uma primeira edição em 2015, onde uma capa bem conseguida retrata um Putin de várias camadas, como uma matrioska, apela com essa imagem à dificuldade que temos em descortinar qual a lógica do seu pensamento e, acima de tudo, o que nos reserva o futuro.

E é fácil ter medo, basta atender às afirmações e ameaças que diariamente são proferidas pelos vários porta-vozes deste “quarto império” para percebermos que nos próximos tempos a nossa vida vai ser regida entre o medo e a sua concretização.

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M Eitchaninoff, no referido livro, centra-se na observação e análise das possíveis motivações de Vladimir Putin, para dessa forma abrir uma janela por onde possamos perscrutar o futuro, se é que futuro é algo que ainda nos é permitido, para além da esperança e o desejo de a ter.

Mas a janela é opaca e a corrente de ar que dela verte vem contaminada com atrocidades e destruição. Uma destruição desenfreada que nos enche as narinas e invade os pulmões com uma náusea lúgubre num misto de raiva e repulsa.

E a janela é opaca! Opaca porque não é possível analisar o protagonista nem as suas motivações, na distância que o livro nos dá e a incerteza que o presente permite.

É assim opaca a janela, assim como são opacas as motivações dos vários peritos, muitos deles os mesmos que opinaram sobre o COVID, e nos transmitem essencialmente “palpites” sobre o “quarto império”, as suas gentes e o seu líder.

Talvez mesmo nada disto faça parte de uma estratégia e seja apenas o reflexo da intuição de alguém que se acha “ungido” de um desígnio que ultrapassa a compreensão dos homens do seu tempo e quiçá, o seu próprio discernimento.

A assim ser, estaríamos perante um “Xamã” que tenta interpretar o sentir e a alma russa dos impérios que lhe antecederam (e é óbvio este desígnio imperial nos salões sumptuosos, e na “mesa”, na longa mesa em que recebe os “peregrinos” do ocidente).

Sente assim o líder deste quarto império a obrigação de dar continuidade ao iniciado pelo príncipe Vladimir em 987 e continuado pelos Romanov, e terminado de forma apocalíptica com a queda do terceiro império, o império dos sovietes, que sob a liderança de Estaline “conduziu a humanidade na sua luta contra o nazismo, construiu a URSS e serviu de forma abnegada para o engrandecimento da mãe Rússia”.

Vladimir Putin é assim, nos dia de hoje, o interprete desses três impérios, e aquele que corporiza esta “Novorossia”, uma Rússia com uma visão conservadora, imperial, patriótica e nacionalista.

Tendo recebido de Boris Iéltsin, nos finais dos anos 90, uma Rússia de mafias e capitalismo selvagem, uma Rússia em que os cidadãos assistiam humilhados à queda do terceiro império, e a uma aproximação à Europa e ao que o mundo ocidental tinha de pior. Uma aproximação assimétrica, visível nas grandes cidades, e que na vertigem dos “Logo”, das marcas do consumo maciço de plástico, ou das que, pelo luxo, cada vez mais acentuava as diferenças entre elites privilegiadas e uma população que da sua condição de vida a única grande mudança a que assistiu foi a de em liberdade sentir humilhação e vergonha. Essa Rússia assim nascida, imbuída do pior que o Ocidente tinha para apresentar (um Ocidente dominado por um neoliberalismo pujante), não podia mais continuar essa via. Vladimir Putin sentiu e viu esse sentimento e lentamente alterou o rumo dessa Rússia de máfias e capitalismo para lhe sobrelevar os valores tradicionais, os valores de uma Rússia ortodoxa, profundamente religiosa, assente em valores familiares e na alta cultura Russa. Uma Rússia que se afastava cada vez mais do Ocidente e de um mundo global unipolar, egoísta e que a não reconhecia. Uma Rússia renascida, que à medida que sentiu o conforto dos seus recursos económicos foi-se transformando num império de tendência euro-asiática seguindo os valores de um Dostoiévski tardio ou de Soljenítsin. Uma Rússia que recuperou muitos valores estalinistas e dos impérios czaristas. Uma ideia de uma nova Rússia ideada por Nikolai Danilievski, Ivan Ilyin, Berdiaev ou Lev Gumilev, uma “Novorossia” baseada em valores culturais ancestrais que aos olhos de saudosistas e desiludidos era a única via que o orgulho permitia.

Mas na transformação que Vladimir Putin operou na sociedade russa, na construção deste quarto império, importou muitas características da sociedade soviética e incorporou-as sob a forma de um fascismo civil.

Em Putin encontram-se-lhe muitas referencias a escritores russos e filósofos contemporâneos. Quando por entre estes filósofos se procura as bases da sua doutrina, este exercício esbarra com muitas incongruências. Como Michel Eitchaninoff identificou, não há nenhum filósofo ou doutrina que se possa identificar no modus operandi do líder deste quarto império. Putin não tem uma doutrina, uma filosofia. Putin tem uma retórica e, citando Ionesco, o importante são as palavras. Tudo o resto é conversa.

E o que nos mostra a história recente?

Em 1853 o terceiro império russo tentou o domínio da península da Crimeia, no que ficou conhecido como a guerra da Crimeia, 1853 e 1856, uma guerra que opôs o império russo do Czar Nicolau I (e Alexandre II desde 1855) a uma coligação de países que incluía o Império Otomano (interessado direto) e uma aliança franco-britânica (regentes à altura da ordem mundial) com o Império Austro-húngaro e uma improvável Sardenha. Esta guerra termina pelo tratado de Paris em 1856, com o Império Russo do então Czar Alexandre II a renunciar às suas pretensões territoriais (península da Crimeia e Balcãs) e à presença naval no mar negro. Mas esta deriva expansionista nunca ficou bem resolvida e como a qualquer “criança” a que se lhe nega um desejo e se contraria uma birra, quando sentiu ventos favoráveis, de novo tentou obter o que desejava – o controlo da Crimeia. Na altura, 2014 o mundo tinha mudado e as novas correntes impediram que à “criança” lhe fosse dada um castigo adequado. Levou assim uma “reprimenda” – sanções de 2014 – e em Julho de 2014 a reprimenda ficou registada no Protocolo de Minsk entre a Ucrânia e a Rússia. Mas como a qualquer “criança” que com uma birra atinge os seus intentos, não necessitou que decorresse uma década para apoiar as novas repúblicas do Donbass e dessa forma declarar que não se ficava por uma nova bolacha – queria o pacote todo.

A incorporação por Putin dos valores da uma Rússia czarista e soviética trouxe desta última muitos “comportamentos” com traços semelhantes aos observados nos regimes fascistas. Um fascismo trajado à civil porque mesmo sem a parafernália e a liturgia com que estes movimentos habitualmente se fazem acompanhar, é possível identificá-los mesmo em traje civil.

Este movimento fascista na Rússia começa na URSS, no consulado de Estaline. Com Estaline, o movimento comunista perdeu a sua vocação universalista (Comintern) e fechou-se sobre o conceito do terceiro império russo, um estado próximo dos movimentos fascistas europeus (com que estabeleceu contactos e acordos, tal como agora Putin o fez tanto com partidos europeus, como com outros além-atlântico). E tal como Estaline, que, após consolidar o poder, na década seguinte deu início ao “grande expurgo” e a um reinado de terror, também Putin tem na sua primeira década uma postura “aparentemente” pró-ocidental, para na segunda década se assumir como o líder de uma ideia de eurásia, centrada num mundo eslavo e ortodoxo. Qualquer um destes dois impérios parece cumprir os requisitos para que se lhe “cheire esses odores fascistas” que Umberto Eco tão bem descreveu como de Ur-fascismo.

E não é necessário ter uma imaginação muito fértil para nos cruéis dias que correm reconhecer nos protagonistas da calamidade que diariamente nos entra pelo pequeno ecrã todos os estigmas enunciados no Ur-fascismo. O constante apelo a valores tradicionais, sejam eles religiosos sejam culturais; a teorização da intolerância selvagem impermeável a todas as críticas; o proselitismo inerente a esta intolerância; a incapacidade de aceitar a diferença; a elaboração de um discurso onde a tradição, o misticismo e o respectivo sincretismo evolui para o que Orwell identificou como duplopensar; a rejeição de tudo quanto é moderno; o culto da acção pela acção; a suspeição da discordância, da crítica, da razoabilidade e das proporções; a aversão ao que é diferente; a apologia do nacionalismo e a exclusividade de privilégios para os nacionalistas; o assumir que a vida se destina à luta e recusar a luta pela vida; a implementação de um estado marcial; o culto dos heróis; o procurar nos outros, nos não nacionais, motivos de inveja, ou um rol de susceptibilidades e vícios que se abomina e condena; falar em nome do povo e assumir que a voz do líder é a voz do povo; tomar algumas vozes mais ruidosas e histriônicas como representativas do povo – “pars pro toto”; a adoção de um léxico próprio, ou de uma “neolíngua” ao tipo Orweliano; são estigmas desse Ur-fascismo que Eco descreveu nesse seu livro de 1997 e que, lido nos dias de hoje, assentam que nem uma luva ao senhor do quarto império.