Existe uma certa atmosfera no ar que nos arruma em dimensões opostas em muitas esferas da nossa existência, com assustadora frequência. “Se gostas de praia é pena, não entendes as maravilhas de viver no campo.”; “Como gostas de animais o teu partido é claro que é o PAN e certamente és vegan.”; “Se fazes tanto pelos bichos é porque as tragédias com crianças não te afectam tanto, não é?” E esta que é uma pérola e que me trouxe à presente crónica: “Afinal, como não dormes com os teus animais, não sentes por eles aquele afecto desmedido que pensei que terias.” Respirar fundo. Lembrar com propriedade a máxima de Nelson Rodrigues sobre o grande acontecimento do século ser a espantosa e fulminante ascensão do idiota (e o que diria se tivesse chegado ao século XXI…?).

Não tendo a minha educação académica pendido para o aprofundamento de temas da psicologia e do comportamento humano, pela experiência vivida, acredito que, sendo o ser humano um animal “de matilha”, no sentido em que é na sua dinâmica social que encontra satisfação, o desejo que sente de agradar e cuidar de outros será porventura um dos aspectos a considerar no seu percurso evolutivo e instinto de sobrevivência.

Ter afecto, desenvolver um carinho pelo animal doméstico com quem partilhamos a casa e a família tem uma razão muito óbvia para o sucesso: a simplicidade. Não existem segundas leituras quando o nosso cão faz uma corrida de alegria quando nos vê entrar em casa. Não precisamos de maquilhagem ou de um bom guarda-roupa para agradar um gato que se aninha no colo e pede mimo. E assim por diante com inúmeros outros bichos e situações em que podemos estar no nosso pior ou no nosso assim-assim garantindo, apesar de tudo, reconhecimento infinito. Mostrar felicidade tão abertamente não traz o risco de a dissipar, como nas relações entre humanos.

Mas afinal, o que é gostar do nosso animal doméstico na medida certa? Assisto com uma serena satisfação aos fenómenos que têm chegado ao nosso País (com o habitual delay) e cujo alvo é o consumidor em paixão delirante pelo seu animal doméstico. Desde os biscoitos holísticos ao spa canino, passando pela bijuteria para pets.

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Ainda recordo (não sou muito antiga), aqui ao virar da esquina na década passada, de fazer queixas muito concretas de maus tratos testemunhados e de ver agentes da autoridade a esboçar um sobrolho franzido que denotava a expressão que se legenda da seguinte forma: “Lá vem a maluquinha dos bichos a chatear”. Mas era apenas o caso de um cachorro que tinha sido espezinhado pelo dono até partir as patas traseiras e seguidamente atirado por cima do muro, para dentro de uma rigueira. Nada grave. Nada comparável com outras atrocidades cometidas contra mulheres ou crianças cujas ocorrências lançam o país para os rankings do esgoto.

Ora, o problema está mesmo aqui. O vício humano na comparação e na polarização dos assuntos. Separamos por defeito, arrumamos na prateleira da categoria certa e identificamos com a etiqueta de validade. Não estamos interessados em compreender e discutir assuntos, pensamos com a mesma profundidade reflexiva de um tweet e avançamos rumo ao próximo juízo instantâneo, numa rede social perto de si.

Eu cá, no meu entender, gostar de um animal doméstico não pode ter medida certa. É daquelas coisas que se manifestam quando se acende uma salamandra interior que nos faz esticar os cantinhos dos lábios e utilizar ridiculamente vários diminutivos na mesma frase. Ando agora a sentir isto por uma galinha de estimação que a minha mãe (cujos afectos transbordam todas as medidas convencionais) adoptou.

E ai de mim dizer que também gosto de crianças, que leio para velhos num lar, que sou adepta do mercado livre e que como, volta e meia, um bife. Infelizes os que têm doses de moderação, sensatez e enormes esperanças numa atitude cívica alargada. Infelizes os que se esticam espaçosamente na cama porque os seus animais estão a dormir nas respectivas cestas. Este mundo não é para eles!