Há cimeira da NATO esta semana. Foi marcada há mais ou menos um ano. Nessa altura, as relações transatlânticas já não andavam famosas, mas desde essa altura deterioraram-se consideravelmente. Bruxelas vai receber os chefes de estado dos países membros e nem a melhor fotografia de família vai conseguir disfarçar o mal-estar entre as partes. Pela primeira vez na história dos últimos 70 anos, um presidente americano vai a Bruxelas e logo de seguida a Moscovo, e parece estar mais predisposto a criar boas relações com a Rússia do que com os seus parceiros da Aliança Atlântica.

Para as instituições europeias, Donald Trump destinou dois avisos: há uns dias declarou que em termos comerciais a Europa é “tão má como a China” e, no que respeita à segurança, terá enviado uma carta a alguns líderes europeus com um friendly reminder de que ainda não chegaram à contribuição dos 2% do PIB para o orçamento de defesa – para já Portugal parece estar fora do conjunto de visados, possivelmente devido à promessa de aumento incremental feita previamente ao aliado americano. Convém lembrar também (garanto-vos que os chefes de estado e governo europeus não se esqueceram) que, na primeira cimeira em que Trump se apresentou como presidente dos Estados Unidos, foi a ferros que se lhe arrancou a garantia de que cumpriria artigo V, o da segurança coletiva.

Já a Rússia nunca teve a vida tão facilitada. É comum os presidentes americanos começarem os mandatos com uma tentativa de normalização das relações com Moscovo. Lembram-se do reset de Barack Obama? Ou do primeiro encontro de George W. Bush e Vladimir Putin? Trump não faz nada disso. Apesar de ter mostrado, quase desde que se tornou candidato, que tem simpatia por líderes nacionalistas fortes, ao jeito de Putin, o que verdadeiramente muda tudo são três questões de fundo: (1) uma preferência expressa diversas vezes pelo presidente americano por relações bilaterais a qualquer outro modelo; (2) os diversos sinais que tem dado de que as relações mais importantes para os EUA são as que se estão a desenvolver com a Rússia e a China (independentemente de serem relações de competição); e, (3) principalmente, uma alteração profunda no quadro normativo do principal aliado da Europa.

A alteração desse quadro normativo prende-se com três elementos fundamentais: para Trump, ao contrário de virtualmente todosos presidentes americanos desde Franklin D. Roosevelt, as democracias deixaram de ter uma importância especial na hierarquia das alianças. Por outras palavras, antes de Donald Trump, mesmo que as obrigações contratuais entre EUA e os estados europeus não fossem cumpridas à risca, a comunalidade do tipo de regime garantia a permanência das relações de amizade. É certo que havia desentendimentos e crises, mas nunca foram suficientes para quebrar os laços de países que tinham em comum não só o mesmo modo de vida como a vontade de que o mundo se parecesse mais com eles (ressalva para as devidas diferenças nos meios e na forma para obter os mesmos resultados).

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Este primeiro elemento está ligado ao segundo: se as democracias e a criação de condições para o mundo ser mais democrático deixaram de ter importância para os EUA, o papel da NATO encolheu consideravelmente. Depois da Guerra Fria, os propósitos da Aliança Atlântica foram reinventados mais do que uma vez para que NATO continuasse a fazer sentido como aliança de segurança. Mas o que verdadeiramente a segurava era um património que os EUA não estavam dispostos a perder, a ainda que com custos elevados: a manutenção de uma comunidade de democracias. Pode perguntar-se porquê. A resposta é que este eixo conferia aos Estados Unidos uma legitimidade sem precedentes na história. E era, no entender americano, a instituição central da ordem por eles construída e mantida. Diz-se muitas vezes nas relações internacionais que os valores não importam. Mas a manutenção da NATO depois do colapso da União Sovi​ética demonstra o contrário. E o facto de a Aliança Atlântica estar a perder vertiginosamente centralidade para a administração Trump também.

Pelo que chegamos ao último ponto: o valor mais importante para a atual administração é a segurança e a manutenção da primazia norte-americana no mundo, ainda que noutros moldes em que os EUA já não são nem os líderes do mundo livre, como na Guerra Fria, nem a potência que queria manter um status quode predomínio dos valores democráticos no mundo, como nos anos 1990-2000. Agora, Washington adota uma tradição que nunca foi a sua (em termos de política externa), em que imperam as normas da soberania e a identificação do interesse nacional com a defesa dos Estados Unidos sem lentes ideológicas ou princípios comuns com outros países. Neste novo quadro não há aliados privilegiados à partida. Há estados com interesses comuns e rivalidades latentes; há estados poderosos com os quais é necessário negociar quase tudo e estados menos fortes sem poder para travar ou viabilizar as iniciativas americanas, que não têm importância por aí além para Washington. Os estados da NATO – eventualmente, salvo a Turquia – fazem parte do segundo grupo. E estes são os pontos de partida para as relações que se desenvolvem.

Assim, se no entender de Trump a democracia não é um valor internacional importante e a Rússia é, por outro lado, um estado fundamental para a manutenção da segurança norte-americana, então deve esperar-se uma mudança profunda (duradoura ou não, ainda não sabemos) na geopolítica euro-atlântica. Em pouco tempo, a Europa foi ultrapassada pela história. Cabe agora aos líderes europeus adaptarem-se aos novos valores. Pede-se urgência. Até porque sem as garantias da NATO, a vulnerabilidade do continente é a mais perigosa ameaça a tudo o que consideramos importante. E é preciso voltar aos momentos mais críticos da Guerra Fria para se encontrar um momento tão decisivo como este para o futuro da Europa.