Há pais que não falam com os filhos e filhos que não falam com os pais. E isso é, de tudo aquilo que se espera da relação entre os pais e os filhos, o que há de mais incompreensível e mais trágico. Porque é como se os pais renegassem os filhos e os filhos os pais. Ou como se uns e outros se expulsassem, mutuamente, da suas vidas. Sem, no entanto, deixarem de viverem presos uns aos outros. Ou, melhor: uns dentro dos outros. Para sempre.

É verdade que acho graça aos adolescentes quando ousam não falar com um pai. Um dia ou dois. Como se, com isso, alimentassem a convicção de o magoar. Ou de o “vergar” ao reconhecimento de uma culpa que acham que é sua. Ou, até, levando-o, sem apelo, à sua “rendição”. Acho graça enquanto isso é, unicamente, uma forma de, com esse braço de ferro, assumirem o quanto se sentem amados, a ponto de se fantasiarem como “super-heróis” e de imaginarem que isso lhes dá “força negocial”. Mas não entendo a forma encolhida e acanhada como os pais e toda a família se submetem a isso. Dias, semanas e meses. Grande parte das vezes não recuam, é verdade, porque a vergonha e os remorsos costuram a arrogância. Mas, seja como for, há  filhos que estão um tempo interminável sem dirigir uma palavra ao pai, como se isso fosse, unicamente, um amuo e nunca um acto, intencional, de violência sobre ele. Mesmo que vivam com os pais, recebam mesada ou andem com um dos carros da família… Chegando-se ao ponto do pai, continuando por este exemplo dentro, responder do mesmo modo. Por mais que um e outro se cruzem na sala ou no corredor. E enquanto a mãe, assustada, trabalha para a conciliação dos dois, suplicando para que cada um desista dessa violência.

Desde quando é que agredir um pai não é um acto de violência, eu não entendo. Porque há coisas que se dizem, desconsiderações graves que se têm ou atribuições de culpa que nos fazem que magoam, gravemente. E algumas que são tão inacreditavelmente más que fracturam o nosso amor. Não, não é verdade que os pais aguentem tudo! Ou que, seja o que for que os filhos nos façam ou a forma como nos decepcionam, que os amemos de forma incondicional, para sempre. Como se todos nós não exigíssemos mais a quem damos mais. Sobretudo quando a forma como nos fazem mal, para mais, parece tornar-nos tão insignificantes e tão “transparentes” que um filho não “mede” quase nada daquilo que somos, de tudo o que se passa connosco ou da forma como, naquele momento, nos sentimos. Magoa, simplesmente.

Há actos que nos matam, por dentro. É isso. E, alguns, que matam de forma tão brutal que ficam, dentro de nós, a matar… devagarinho. Que doem tanto que nos desmoronam; é mais assim. E que nos fazem perguntar que sentido tem insistirmos em estar vivos quando quem mais o devia exigir insiste em nos magoar. Como se reage a alguns momentos em que sentimos que o melhor de nós não mede os seus actos e nos inunda de sofrimento e nos desregula o corpo e a “alma”? É por isso que eu acho inadmissível que se magoem os pais. Presumindo que os pais não magoem os filhos. Mas mesmo que o tenham feito, assim tenham a clarividência de “ressuscitar”, como pais, através daquilo que lhes exigem de cuidado, para com eles, depois dessa dor.

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É claro que entendo menos, ainda, que se magoe quem nos ame e que se ”trate bem” quem se desconheça. Os vaidosos exageram nesse “formato”. Como se guardassem o pior deles próprios para o melhor de si. E seduzissem e “cuidassem” daqueles a quem precisam de se mostrar “bons”, como se fosse possível sermos maus filhos e boas pessoas ou maus filhos e bons pais. Ou como se tivessem toda a autoridade moral, quando se trata de nos imputarem culpas, mesmo que o façam para nos intimidarem tanto que nos “roubam” a força de lhes apresentarmos as suas. Às vezes, quando os filhos e os pais se magoam com violência fazem coisas assim. Como se todo o mal que terão feito lhes parecesse tão irreparável que, sempre que “começam do zero” algumas relações procurassem pequenas “cápsulas de amor-próprio”, por falta do amor. A vaidade é uma forma de maldade. E eu acho que é por vaidade que os filhos e os pais se violentam, na maior parte das vezes.

Há, por fim, um outro formato dos filhos não falarem com os pais. É quando – com o cuidado de quem os quer poupar às suas dúvidas, às suas dores ou aos seus medos – não os maltratam e não lhes mentem, é certo, mas lhes ocultam verdades de si próprios. Ora, empurrar (mesmo que seja por bondade) um pai para longe da verdade de um filho é deixar de lhe falar. É inabilitá-lo como pai. É magoá-lo. Ou é dizer-lhe que já não está à altura de ser nosso pai.

É por isso que, se eu pudesse interditar alguma coisa, proibia que os pais e os filhos deixassem de se falar. Simplesmente porque morremos sempre que desistimos daqueles que nos dão vida e nos deram “o ser”. Sejam eles filhos que não falam com os pais. Ou pais que não falam filhos.