Muito provavelmente, se eu votasse em Itália, teria votado como a maioria votou no referendo. Por uma razão muito simples, num país que num passado recente teve um (Trump) Berlusconi como primeiro-ministro — e que se arrisca, num futuro próximo, a ter um Beppe Grillo a ocupar a cadeira —, é demasiado perigosa a concentração de poderes no partido do governo. Mas, dada a forma como decorreu a campanha, compreendo que muitos europeus tenham ficado desiludidos com o resultado do referendo, vendo nele um voto antieuropeu. E, como sempre acontece nestas ocasiões, com a confusão que esta votação italiana ameaça gerar, logo um coro de vozes se levantou contra o instituto do referendo.

O argumento mais veiculado nesta senda é o de que há assuntos que são demasiado complexos para os cidadãos comuns. Por exemplo, Alexandre Homem Cristo escreveu que “se tornou evidente que os cidadãos (britânicos e italianos) não entenderam inteiramente o que estavam a decidir nem as respectivas consequências da sua decisão.” Não sei bem que evidências tem Homem Cristo. Mas a verdade é que o mesmo pode ser dito a respeito dos nossos representantes políticos. Por exemplo, parece-me evidente que, quando decidiram avançar para a moeda única europeia, os nossos representantes não tinham consciência de todas as consequências da sua decisão. Na Dinamarca, em referendo, os eleitores votaram contra a participação na moeda única, apesar de uma maioria esmagadora do parlamento ser a favor. É assim tão óbvio que a razão estava do lado do parlamento? A Suécia, que se juntou à União Europeia em 1995, propositadamente não cumpre os critérios de convergência para não ser obrigada a aderir ao Euro. Em 2003, em referendo, os suecos reforçaram a sua decisão de não adoptar a moeda única. Em 2008, a Irlanda votou em referendo contra o Tratado de Lisboa. É assim tão evidente que os irlandeses não sabiam o que estavam a votar? Ou, pelo contrário, eles demonstraram bem mais bom senso do que os seus representantes políticos? Mais uma vez, a resposta não me parece óbvia.

Mas, mesmo que aceitasse o argumento de que os políticos são pessoas muito mais inteligentes e bem informadas do que nós, os mortais, daí não decorreria que devessem ser os políticos a tomar estas decisões complexas. A estatística está do lado das multidões. Por exemplo, imaginemos que há que tomar uma decisão muito complicada, com uma imensidão de ramificações inacessíveis ao cidadão comum, como ratificar ou não o Tratado de Lisboa. Suponhamos de seguida que uma mente brilhante, por hipótese, José Sócrates, toma a decisão correcta com uma probabilidade de 99,99%.

Qual a probabilidade de o cidadão comum, pobre coitado, acertar na resposta correcta? Para procurar responder a esta pergunta, tentemos estabelecer um limiar mínimo para essa probabilidade. Imaginemos um macaco. Qual a probabilidade de um macaco acertar na resposta certa? Partindo do princípio de que o macaco não faz a mínima ideia do que está a ser votado, o macaco acertará com uma probabilidade de 50%. Se admitirmos que o cidadão comum é mais inteligente do que um macaco, então a probabilidade de cada cidadão acertar na resposta certa será, certamente, superior a 50%. Consideremos o valor de 50,5%. Ou seja, estou a considerar que a probabilidade de o cidadão comum acertar na resposta certa é marginalmente superior à de um macaco. Com base nestas probabilidades, e admitindo que o voto de cada cidadão é independente do dos demais, podemos calcular a probabilidade de, por exemplo, entre três cidadãos, pelo menos dois deles votarem bem:

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(50,5%×50,5%×50,5%)+(49,5%×50,5%×50,5%)+(50,5%×49,5%×50,5%)+(50,5%×50,5%×49,5%)=50,75%

Se forem 1001 votantes, as contas são as mesmas, apenas mais complicadas. Nesse caso, a probabilidade de que haja uma maioria que vote correctamente é de 62,4%. É fácil de perceber que à medida que o número de votantes cresce, aumenta a probabilidade de se acertar na resposta: para meio milhão de votantes, essa probabilidade é de 99,99999999992%. Ou seja, não precisamos de ser todos génios. Basta-nos estar um pouco acima do macaco. Repare-se que estas contas foram feitas no pressuposto de que existe uma resposta certa. Mas a verdade é que muitas vezes essa resposta nem sequer existe, o que há são interesses, muitas vezes, conflituantes. Quando assim é, ainda mais difícil se torna acreditar que sejam os políticos a saber melhor do que os eleitores quais os seus interesses.

Ao argumento anterior, pode-se acrescentar uma série de outros. Há diversos trabalhos académicos que mostram que as populações que mais vezes votam em referendo são as populações mais satisfeitas com a sua democracia. Estes resultados não são surpreendentes. Há uns anos, no Inquérito Social Europeu, perguntou-se aos cidadãos de 29 países até que ponto era “importante para a democracia” que “os cidadãos tivessem a palavra final em assuntos políticos relevantes votando directamente neles em referendos”. Numa escala de 0 a 10, a resposta média foi de 8,3. É difícil ser-se mais veemente.

É fácil perceber por que motivo tantos políticos são contra os referendos: com estes quebra-se o monopólio dos políticos na tomada de decisões; ficam obrigados a seguir políticas concretas que agradem aos eleitores. Se, ao invés, for fácil aos cidadãos impor um referendo, então os parlamentos são obrigados a prever essa possibilidade quando aprovam leis, tendo, assim, mais incentivos para respeitar as preferências do eleitor comum. Mais uma vez, os resultados da Ciência Política são claros: usando dados quer para os EUA, quer para a Suíça, há trabalhos que demonstram que os locais onde há maior sintonia entre os interesses dos cidadãos e as políticas públicas são os estados e os cantões onde a abertura aos referendos por iniciativa popular é maior. Ou seja, o referendo ajuda a alinhar os interesses dos políticos com os dos cidadãos.

Qual é a situação em Portugal? Por cá, alguém que queira propor um referendo tem de juntar 75.000 assinaturas (dez vezes mais do que as necessárias para se candidatar à presidência da república ou para constituir um partido). Se conseguir, fica sujeito à votação na Assembleia da República. Se aprovado na AR, terá de passar pelo Tribunal Constitucional. Se passar no TC, ainda fica dependente da decisão do Presidente da República. Ou seja, na prática, é impossível ocorrer um referendo de iniciativa popular. Junte-se a isso um parlamento em que os deputados votam como carneiros que obedecem às ordens do pastor e dificilmente se fica espantado com o descontentamento crescente com a democracia portuguesa.