A manhã começara exemplar. Céu azul, sem vento e a temperatura termostática. Tomei banho e arranjei-me. Telefonei à minha filha mais nova que fazia anos e preparei o biberon da neta Gracinha, para a mãe lhe dar. Soltei a cadela no jardim e fui até ao café. Andei cem metros e caí na rua, fulminado por uma síncope. Foi tudo muito rápido e não senti dor. Apenas uma súbita falta de ar, a fugaz sensação de queda e o apagão total. Voltei ao mundo e havia caras estranhas e excitadas por cima, formando uma chaminé humana com o azul do céu ao centro. Levaram-me para o hospital onde desconhecidos decidiam por mim. Esta é a história banal de uma embolia, só que foi a minha.

Durante o internamento descobri coisas novas. Percebi que entre o doente grave e os tratadores se estabelece uma relação canina, de poder unilateral. Em lado algum se sente o poder absoluto como na cama do hospital. A menor auxiliar de enfermagem tem autoridade despótica sobre Napoleão ferido. Pode fazê-la sentir facilmente, basta demorar-se com o urinol.

Soube também o que é a despersonalização brutal. Despiram-me de tudo e de mim. Fiquei sem roupa, sem documentos, sem telemóvel, sem a cruz de prata ao pescoço, sem a aliança e sem vontade própria. Já não era o Nuno, era apenas o doente. Tornei-me num corpo, como os do talho.

Curaram-me por fora, mas fiquei a cismar por dentro. As minhas ideias sobre a imponência da vida e a tragédia da morte mudaram. Não sei porque é que morrer há-de ser tão mais extraordinário do que nascer. Nos dois casos ocorre uma transformação irreversível de um estado anterior. Em ambos existe também alguma dor associada, mas provavelmente menor do que aquela que se supõe vendo as coisas à distância. A vida brota e desbrota com a mesma naturalidade. A nossa imaginação é que pode muito bem dificultar as coisas.

Morte súbita? Talvez afinal não tenha tanta importância, chega apenas um pouco cedo.

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