De entre todos os nossos filhos, há sempre um que, a determinada altura da sua infância, quer casar com a mãe. A ideia (um bocadinho avestruza) de que isto é o exemplo duma perigosa escorregadela para o incesto — a que, quando as crianças não eram cuidadas e a Humanidade não era escolarizada, fomos chamando complexo de Édipo — sempre me pareceu “pateta”. Sobretudo quando, a seguir, se pressupunha que, sem um músculo moral “de betão”, todos correríamos o risco de libertar o animal que há em nós. Ora, somos animais, sim. Mas muito mais que isso, claro. E mal estaríamos se partíssemos do pressuposto que a inteligência e a bondade humanas derivariam de “coletes de força” e não duma competência ética que, quando somos amados, todos temos. Desde sempre.
A par desta ideia dum presumível complexo de Édipo, que parecia ter de ser manuseado com uma delicadeza semelhante àquela com que se lida com os produtos explosivos, vai-se escutando por aí que os pais se relacionam mais facilmente com as filhas e que as mães o fazem muito melhor com os seus filhos rapazes. Tentando pôr alguma “ordem” nisto tudo, comecemos pelo princípio.
Os pais e as mães não gostam de todos os filhos de forma igual. Não tanto porque não o desejem, acima de todas as coisas. Mas porque há tantos sobressaltos na relação entre os pais e os filhos que, a certa altura, aquilo que projectamos num filho ou aquilo que reconhecemos nele tem muito mais a ver com coisas nossas (medos, características assim-assim, etc.) que, no meio de todos os desafios que ele nos coloca, circulam numa espécie de ping pong entre nós e ele.
Habitualmente, o pai revê-se mais num filho. Porque é mais “igual” a ele. Porque acha que é mais fácil adaptar-se às brincadeiras de um rapaz. Às vezes, quer tanto que ele represente uma espécie de eternidade para si próprio que chega a colocar-lhe o seu próprio nome. Mas, nalgumas circunstâncias, quando dá conta que o seu rapaz “gosta” mais da mãe, ou que entre ele e a mãe há um nível de cumplicidade mais “apurado”, há pais que se melindram. E que reagem com um filho rapaz de forma magoada. Quase irritativa. Ou dada à embirração. Que os faz distanciarem-se. Isto é, às vezes, a forma como um filho e um pai se separam não tem tanto a ver com um filho a gostar menos de um pai. Mas de um pai, embrulhado nas suas “confusões”, não conseguir gostar tanto dele como desejava. Com o respectivo “troco” a chegar, logo a seguir.
Às vezes, um pai — que não consegue manifestar tudo aquilo que sente com a mãe dos seus filhos — consegue ter com uma filha a delicadeza, a atenção e os cuidados que não consegue ter com a mãe dela. A ponto de, em muitos casos, haver filhas que intuem muitíssimo melhor os estados emocionais do pai que a sua mulher. E pais que, à medida que as filhas crescem, fazem confidências a uma filha que nunca fizeram à sua mulher. Chegando a momentos em que, quando uma mulher quer convencer o marido para uma saída ou para uma compra, por exemplo, pede à filha que interceda junto do pai para que isso seja possível. Dito doutra maneira, quanto mais um pai se dá a um filho, mais se torna reconhecido por ele. E mais a relação dos dois permite que eles comuniquem por “sinais de fumo”.
Agora, vamos pegar na dedicação de uma mãe com um seu primeiro filho, por exemplo. A relação é tão inacreditável, que um primeiro filho, por mais que ninguém o assuma, é sempre “o menino” da sua mãe. Se for uma rapariga, também o será. Mas é natural que a mãe queira muito que ela seja uma “versão melhorada” da mãe. E que, em função disso, quase sem se dar conta, exija e exija. Quando exige, é porque espera que a filha corresponda a tudo aquilo que a mãe mais quis para si. Só que sempre que a filha sente a sua exigência, isso mais parece que a mãe nunca se satisfaz com quase nada. É claro que com um filho não se passa de forma diferente. A diferença é que a mãe se projecta de forma menos directa nele. Por isso mesmo, é natural que não haja tanto ruído na forma como se amam. Isso faz com que a mãe exija menos porque se projecta menos. O que abre espaço para que, a seguir, um filho dê à mãe mimo e colo com uma qualidade que o pai nunca terá sido capaz de dar à sua mulher. Para não falar no modo como um filho diz mais vezes à mãe “Amo-te muito!” num mês do que o seu pai terá dito à mãe do filho no último ano. O que ajuda a que uma mãe sinta que aquele amor sem barreiras faz daquele filho “o homem” da sua vida.
Ou seja, aquilo que pode parecer uma diferença de base, quase biológica, entre a forma como pai e mãe amam um filho e uma filha é mais uma consequência da forma como se relacionam com eles, se projectam neles e interpretam os seus gestos do que, propriamente, uma diferença sexista de amar, que os separe.
Por tudo isto, eu gosto quando uma criança se imagina a casar com a mãe. Isso não quer dizer que tenha que matar o pai para ocupar o seu lugar, claro. Mas, antes, que, imaginando alguém com quem venha, um dia, a casar, essa essa pessoa tenha de ter – pelo menos! – as características da mãe. Vendo bem, todos “casamos” com a mãe. E todos casamos com o pai. “Casamos”’ com as características deles que fazem parte de nós; e com as outras, que nos são familiares (e que têm mais a ver com eles do que, muitas vezes imaginámos), que encontramos na pessoa com quem casamos. É verdade que, por vezes, estamos tão “adaptados” a algumas características dos nosso pais que, sem darmos por isso, vamos ficando tão “aptos” para elas que, “inconscientemente”, essa nossa competência é notada por alguém muito parecido com algumas das características “chatas” dos nossos pais. Às vezes, casamos com alguém muito parecido com as coisas mais irritantes dos nossos pais. Às vezes, escorregamos para alguns vícios de forma relacionais e escutamos um ou outro: “Achas que eu sou a tua mãe?…” Noutras circunstâncias, há pessoas que, ao fim de algum tempo, se separam. E quando, mais tarde, apresentam uma nova relação aos seus amigos, eles gelam. Porque essa nova relação é tão igual a esses lados “feios” que há escolhas que parecem representar um padrão ao qual se está preso. Ou uma compulsão à repetição.
Seja como for, nada “tem de ser” assim. A verdade, é que aquilo que os nossos pais são e a forma como nos amam interferem mais nas nossas relações amorosas do que, muitas vezes, imaginamos. E interfere, até, na forma como somos pais e reproduzimos, mais vezes do que seria de desejar, grande parte das coisas que eles fizeram connosco. Feitas as contas, regra geral, isso é bom!Daí que se ache que seja mau que se ache que “casar” com a mãe ou com o pai é sempre “um perigo”, ou que isso é uma deriva em torno do complexo de Édipo já é pouco razoável. Até porque sem a gramática do amor que os nossos pais representam, não se vai a sítio nenhum.