Uma história de vida pode ser desalinhada de múltiplas formas: experiências, sonhos, situações-limite. Julgo que as perguntas, talvez não todas, poder-se-ão incluir na lista de possibilidades. Algumas perguntas serão daquelas a que costumo chamar tipo “murro no estômago”. Daquelas que nos tiram do lugar, que nos deixam com a respiração suspensa, sem ar, que nos voltam de pernas para o ar, que desconsertam a vida: começam por ser perguntas, avançam para um perguntar e transformam-se num perguntar-se. Convido-vos a caminhar com perguntas.

Desde criança que suponho que todas as coisas estariam relacionadas por laços ou arcos, visíveis ou invisíveis. Intuí que os temas de história, de matemática, de português, de religião, das artes e das técnicas se interligavam: davam conta de certos alinhamentos entre espaços e tempos, tempos ora cronológicos ora de outras naturezas. O desafio seria, então, encontrar a trama que os teceria suspeitando que o humano estaria, algures, nesses laços ou arcos.

À pergunta “o que é que queres ser quando fores grande?” respondia prontamente: professora. A afirmação, tão comum, bem-intencionada e intemporal, que “as crianças e os jovens são o futuro, o amanhã de uma sociedade, …” conduzia-me a pensar acerca de uma noção de crianças/ jovens como um compasso de espera, a quem lhes falta ser no presente. Mas andava por ali uma pergunta-inquietação que vinha de uma certa inversão da questão: “e enquanto não for grande, o que sou?”

Em 25 de abril de 1974 tinha 9 anos. Desde então, algumas imagens impregnam o que sou e estou: a abertura dos portões das prisões, largos, altos, pesados que encarceravam os presos políticos; as expressões nos rostos de olhos bem abertos como que querendo ver de outro modo o que, de outro modo, já tinham visto transpondo aqueles portões, devagar e com esperança; as lágrimas grossas, fáceis e sérias, contidas e à solta, de familiares e amigos à espera do reencontro. Afinal a liberdade e a igualdade não são ofertas, são conquistas, são património sofrido e legado precioso a cuidar e criar. O sentimento de gratidão que me invadiu deu origem, ou originou-se, em mais uma pergunta-desarrumadora: quais serão as condições necessárias para cuidar e criar esse legado?

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Mais tarde descobri a filosofia, sempre de mãos dadas com o filosofar. Dito de outro modo, uma vida filosofante, uma filosofia vivente na pergunta, no perguntar e no perguntar-se. Não poderia ser/ estar de outro modo que não fosse o de educadora. E a filosofia era a área. Durante 25 anos de exercício do professorado outra pergunta “serei professora de filosofia ou filósofa?”. Após o habitual périplo docente de início de carreira, trabalho já há quinze anos em Vila Franca do Campo, São Miguel. Compartilho algumas perguntas-desassossego que rondam o meu “ser/ estar professora”: o que é aprender e como se aprende ensinando? o que é ensinar e como se ensina aprendendo? a escola é algo que é ou que se faz? o que é a relação ensinante e que condições são necessárias para que aconteça?

O espírito indagador levou-me de volta à universidade. Em 2016 ingresso no Mestrado em Filosofia para Crianças (Universidade dos Açores). Pela mão do filósofo Matthew Lipman, a filosofia convidou as crianças, elas aceitaram o convite e trouxeram as infâncias. Matthew Lipman afirma que as crianças têm fome de sentido e que a escola está a matar à fome a fome de sentido que as crianças têm. E eis que uma pergunta-desconcerto espreitou: como poderia eu, enquanto professora, e a escola enquanto sistema e instituição, estar a matar à fome esta fome de sentido? O encontro entre a filosofia e as crianças provoca uma certa perturbação, um certo desassossego, uma certa mudança na ordem comum, e indica-nos novos olhares sobre a filosofia e o filosofar. Em certo sentido, lança um olhar diferente sobre que é uma criança, não enquanto potência para o que pode ser, mas para o que é. A filosofia cumpre, deste modo, mais algumas das suas vocações: a filosofia para/com crianças trouxe para a filosofia o filosofar infantil e reconhece as crianças como sujeitos válidos de um pensar filosófico.

Assim nasceu (2014/2015) o projeto Filosofâncias: comunidades de investigação filosófica da escola Armando Côrtes-Rodrigues: um lugar de errâncias com a pergunta, um lugar de encontro de infâncias filosofantes (de qualquer idade), um lugar de pensar filosoficamente em que mundo vivemos em conjunto, e em que mundo queremos viver em conjunto. No âmbito das Filosofâncias foi estabelecida uma parceria entre a escola e o Mestrado em Filosofia para Crianças (Universidade dos Açores) que tem inaugurado novas relações entre a academia e a escola: as crianças, jovens e professores entram na universidade como parceiros na construção de conhecimentos e não como objetos de estudo e os professores universitários entram na escola não como especialistas com receitas a implementar mas como parceiros de experiência de pensamento. Desta caminhada companheira entre escola e universidade brotam perguntas-deslocadoras: que escola/universidade temos e que escola/universidade queremos ter?

Nas Filosofâncias tratamos de criar condições para que se viva uma skholè (termo grego clássico para escola que quer dizer tempo livre). O tempo livre a que se refere a skholè não é um tempo sem nada para fazer ou para não fazer nada, é um tempo livre do trabalho e da atividade do dia-a-dia para leitura e aprendizagem, um lugar de encontro entre professores e estudantes, numa relação ensinante. A maioria das nossas escolas não são skholè. Nas nossas escolas entram toda a sorte de representações dominantes que servem de modelo de organização, de currículo e de avaliação, por exemplo. Como seria interessante que as nossas escolas pudessem ser, também, lugares onde o tempo comum das exigências sociais fosse colocado entre parêntesis para pensarmos criticamente em liberdade e em comunidade. E fazermos isso num tempo presente, talvez o tempo da infância, o tempo do pensamento, o tempo da criação, o tempo do amor.

Esta ideia não será, por certo, inovadora, mas é sempre nova, sempre fresca, sempre principiante. Encontramo-la, por exemplo em Agostinho da Silva, um educador, filósofo e poeta português. Uma “figura socrática” da filosofia, da educação, da literatura ou de todas, um pensador para quem a filosofia é um modo de vida. Agostinho da Silva deixou-nos cartas, ensaios, poesia, contos, aforismos, revistas, conversas vadias e entrevistas. Um filósofo-presente que afirma: “quando se perde humanidade, não vale a pena ser filósofo”. Fiquei a pensar: o que não se poderá perder na escola para que esta continue a valer a pena?

É por estas andanças que ando.

Caderno de Apontamentos é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.