Numa democracia liberal em que reina o pluralismo de ideias e convicções e diferentes projetos políticos alternativos e concorrentes competem entre si, verificam-se, com frequência, desacordos profundos quanto a questões sociais, morais, distributivas e éticas. Muitas vezes essas divergências redundam em dissensos quanto a um outro conflito, traduzido no problema de saber quem tem autoridade para decidir. Assim, dúvidas fortes sobre temas centrais e sensíveis como a admissibilidade da interrupção voluntária da gravidez ou do auxílio ao suicídio, são muitas vezes contaminadas por discordâncias quanto a um outro problema, que se reconduz a estabelecer, no processo democrático, quem tem autoridade para resolver esses conflitos.

Esta hipótese é muito visível no debate que se trava atualmente em Portugal. A um desacordo muito grande quanto à admissibilidade da eutanásia e da antecipação da morte com intervenção médica, alia-se agora a discussão sobre se é o parlamento o lugar adequado para dar resposta a estas questões ou, ao invés, se deve ser chamado o povo a pronunciar-se, diretamente, em sede de referendo. Ou, ainda, se o Tribunal Constitucional deverá chumbar o regime jurídico emanado da Assembleia da República, a pedido do Presidente da República.

Esta transformação de um conflito sobre questões substanciais em conflito sobre questões formais e institucionais é muito frequente e não deve ser encarada como um problema menor na articulação dos valores e interesses em presença. A gestão do conflito por autoridades diferentes, de modo sucessivo, é, aliás, uma realidade em democracias em que a separação de poderes é um valor real e não apenas um princípio nominativo.

Tem-se falado muito sobre a experiência de outros países em matéria de fim de vida. Mas não se tem discutido que, mesmo nos países que mantêm a criminalização do auxílio ao suicídio, os tribunais têm desempenhado um papel crucial na gestão dos conflitos médicos e sociais que têm ocorrido. Em vários desses países a discussão política e social sobre o tema é bastante intensa e antiga. Perante a incapacidade política de operar, formalmente, modificações formais no regime jurídico, as mudanças acabam por ocorrer, na prática, por via de intervenções de profissionais médicos, magistrados do ministério público e juízes.

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Concretizando: todos os países que são referidos nos pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida como exemplos em que a criminalização se mantém – França, Alemanha, Reino Unido – conhecem vários casos em que a prática efetiva de eutanásia ou auxílio médico ao suicídio chegou aos tribunais. No Reino Unido existem estudos empíricos que apontam para uma prática secreta, e de algum modo consistente, da eutanásia. Mesmo nos países onde estudos sistemáticos não estão disponíveis, é possível perceber-se como é que o sistema jurídico, na prática, encara as situações de transgressão, em que médicos e até familiares de doentes terminais e em situações de sofrimento insuportável, auxiliam ou administram, efetivamente, a morte misericordiosa e por compaixão, mesmo arriscando pena de prisão. Esses mesmos sistemas jurídicos proibitivos e repressores são aqueles que, quando confrontados com situações efetivas de “morte por compaixão”, se recusam a instaurar processos crime ou, instaurando-os, absolvem os agentes dessas práticas. E, nos poucos casos em que há, efetivamente, punição, a mesma fica-se pelo campo disciplinar ou, em situações raríssimas, traduz-se em aplicação de pena de prisão suspensa. Aliás, o Supremo Tribunal britânico já sinalizou a potencial invalidade de um regime que proíbe em todo e qualquer caso o auxílio ao suicídio, deferindo, no entanto, a questão para o legislador, em conformidade com o princípio da soberania parlamentar.

Avaliar a performance de um sistema jurídico impõe que se vá além do law in books e se considere como é que o mesmo atua, na vida real, perante os desafios sociais que se lhe colocam – enfim, como é o law in action. E, entre ambos, a dissonância pode ser gritante, como o demonstra a prática que encontramos em França e no Reino Unido, com raríssimos casos em que o auxílio médico ao suicídio é punido criminalmente. Este é um dado importantíssimo para a discussão que agora travamos em Portugal: será que a ordem jurídica, na repressão criminalizadora que estatui e na proibição formal de qualquer auxílio à antecipação do fim da vida está, efetivamente, a dar a resposta congruente com os anseios profundos da sociedade portuguesa? E estará efetivamente consonante com a prática? Teremos já, como sucede naqueles outros países, situações em que, na verdade, a morte misericordiosa estará a ser aplicada, sem regulação, sem standards de controlo e, sobretudo, sem qualquer garantia de igualdade de tratamento que a dignidade imanente a todo o ser humano impõe?

Vejamos o caso italiano, em que vigorava, até há pouco tempo, a criminalização de qualquer ato de auxílio ao suicídio. Em setembro de 2018, num caso mediático que envolveu o suicídio assistido, na Suíça, de um conhecido DJ que ficou tetraplégico e cego aos 37 anos de idade, o Tribunal Constitucional ordenou ao legislador que, no prazo de um ano, aprovasse legislação descriminalizando, em certas circunstâncias, o auxílio à antecipação do fim da vida, e permitisse a prestação de serviços médicos nesta matéria. Como este apelo não foi cumprido, em setembro de 2019 o próprio Tribunal Constitucional aprovou, por decisão judicial, o regime jurídico que descriminaliza, em situações de sofrimento insuportável e incapacidade total, a atividade que permite acelerar o processo irreversível da morte, poupando a pessoa, assim, ao sofrimento e indignidade maiores que esses últimos tempos implicam. É notável que a relevância deste tema e a sua importância nuclear para a sociedade levou a que o Tribunal Constitucional italiano, de modo absolutamente inédito, assumisse a função legislativa e definisse, de modo vinculativo, o regime jurídico que descriminaliza, em certas circunstâncias, o suicídio assistido e a atividade médica que conduz à antecipação do fim da vida.

Por fim, vejamos o que se passa na Alemanha. Ontem, 26 de fevereiro, o Tribunal Constitucional Federal alemão declarou inconstitucional a criminalização do auxílio ao suicídio e afirmou a existência de um direito fundamental à morte autodeterminada. Para os juízes alemães, o legislador deve assegurar que cada indivíduo pode exercer o seu direito – que inclui o direito ao suicídio – e que implemente, nos seus próprios termos, a decisão de, ativamente, pôr fim à sua vida, desde que tal tenha por base uma decisão voluntária e informada. Esta decisão destaca-se, no plano comparado, por afirmar o direito à morte autodeterminada com uma extensão até agora ímpar, rejeitando que o mesmo possa ser restringido, pelo legislador, aos casos de doenças terminais ou incuráveis ou em situações de sofrimento insuportável. Segundo o Tribunal alemão, o legislador apenas pode restringir este direito com base em mecanismos procedimentais, devendo abster-se de juízos valorativos quanto ao que são motivos válidos para antecipar a morte com eventual auxílio de terceiros – juízos dessa índole têm lugar no campo social, ético ou religioso, mas não são fundamentos juridicamente válidos para restringir o direito à autodeterminação (também) na morte.

Retornemos agora a Portugal. Nenhum destes elementos de direito comparado fornece um argumento decisivo que resolve qualquer dos dois debates que travamos: primeiro, o da admissibilidade da eutanásia ou do suicídio assistido, em certos casos extremos e, segundo, o de saber em que sede deve esta decisão ser adotada (parlamento, referendo ou no próprio Tribunal Constitucional). Em última análise, a resposta definitiva a qualquer uma destas questões deve ser encontrada no sistema constitucional português.

Mas os exemplos destes países são indicativos da fragilidade do argumento segundo o qual o parlamento português não tem legitimidade democrática para decidir sobre esta questão. Basta recordarmo-nos de que, nos países que nos são mais próximos, esta discussão está a ser travada nos tribunais e liderada por ativistas pelo direito à morte assistida…