No que se apelida de assoberbante “esquerda ideológica” da internet, canta-se a igualdade de género e orientação sexual, celebração de culturas individuais, liberdade de identidade, e um conjunto de outras posições adotadas quase universalmente. Estes ideais liberalistas são o produto de uma geração que cresceu com melhores condições básicas de vida e, portanto, pôde ocupar-se de fraturantes temas sociais. O que é excelente, não nos iludamos: tratam-se de aspetos profundamente enraizados na experiência humana e a necessidade de abordar estas temáticas e criar aceitação é gritante.

É curioso, porém, notar a crescente onda de intolerância perante quem se atreve a questionar algumas destas ideias. Repare-se que qualquer indivíduo racional que pondere sobre ética e moral humana deverá, sem dúvida, chegar aos valores enumerados acima. Contudo, atualmente, o próprio processo de refletir sobre o sentido destas proposições é visto como sinal de mau caráter – devemos aceitar cegamente estes ideais, sob pena de sermos isolados como párias ideológicos. Um paradoxo de inaceitação radical de quem se atreve a refletir sobre a aceitação.

Os efeitos sociológicos desta tendência poderiam ser extensamente apresentados por alguém com melhores habilitações que eu, que apenas refleti sobre estas questões num acesso espontâneo de existencialismo. Foquemo-nos, portanto, numa dimensão apenas, mas cujas implicações merecem ponderação: a Ciência.

A Ciência é, por natureza, apolítica. A procura pela Verdade deveria viver um vácuo ideológico, aplicando métodos objetivos para investigar todas as hipóteses que se aparentem promissoras. Infelizmente, esta é uma perspetiva utópica do mundo científico: quem aplica a Ciência são os humanos; os humanos são falíveis; logo, a Ciência é falível. Outros interesses acabam por se entrelaçar com a motivação para chegar a novo conhecimento, necessidades financeiras, contextualização histórica e cultural, o próprio instinto de auto-preservação de um cientista que não deseja desaparecer misteriosamente porque as suas conclusões questionam o regime político em vigor. Portanto, a Ciência é apolítica, mas não se pratica apoliticamente.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nos dias de hoje, inundados de correção política sob pena de exclusão social, a Ciência verga-se mais e mais a ideias que o público geral denomina “confortáveis”. Não faltam relatos de investigadores que foram afastados dos holofotes da divulgação científica devido a ideias que contrariam a perceção pública do que deve ser explorado. A censura da liberdade científica não é um padrão novo, mas é um padrão que vemos ocorrer com crescente frequência, agora que as redes sociais permitem a qualquer sujeito com dois polegares (ou menos que isso) licitar na hasta pública de juízos científicos.

Numa primeira vista parecerá arrogância, presunção destes indivíduos, desde o Zé da Esquina até ao mais proeminente intelectual da Academia, por se considerarem aptos para assumir a posição de guardiões dos portões da Ciência. Porém, a verdade é que este efeito social está embebido numa fragilidade sistémica: o facto de existirem assuntos tabu na Ciência, hipóteses cuja exploração – cuja própria formulação – é proibida para qualquer investigador que deseje manter a sua carreira, revela nada mais que uma profunda falta de fé na robustez do nosso método científico; e uma curiosa mas talvez fundamentada desconfiança na maturidade intelectual das massas.

O método científico que aplicamos atualmente está nos alicerces de todo o nosso conhecimento e tecnologia. Rege a evolução do saber humano segundo princípios que, a seu tempo, tratam de descartar todas as teorias falsas, falácias e vieses. Neste processo de poda das conjeturas mais frágeis, a árvore da Ciência só poderá crescer na vertical, no caminho para a Verdade científica. Cremos nisso, porque também o método científico sofreu uma evolução até produzir resultados confiáveis – outrora, a Ciência era baseada na descoberta de correlações aleatórias e uma dose substancial de imaginação (frequentemente atribuindo a deuses tudo aquilo que não era imediatamente explicável).

A robustez tantas vezes comprovada do nosso método de chegar a novo conhecimento deveria ser a motivação primária para não fechar portas a quem pretende explorar ideias pouco ortodoxas, ou politicamente incorretas. A nossa realidade é altamente susceptível à contemporaneidade dos conceitos, é certo: basta-nos recordar a eugenia nazista que marcou a ação política de Hitler. Mas o simples facto de, hoje em dia, podermos olhar para estas conclusões e determiná-las infundamentadas e declaradamente falsas significa, exatamente, que os filtros da boa Ciência continuam a funcionar a todo o gás; apenas levam o seu tempo.

Se esta premissa apoia o argumento de que a Ciência não devia, sob nenhuma circunstância, ver-se subordinada a crenças contemporâneas, o argumento contrário jaz, exatamente, no tempo que os filtros levam a atuar. Esse intervalo entre uma conclusão errónea de um estudo e o desacreditar da mesma pode ter consequências devastadoras. Como exemplo, um artigo de Andrew Wakefield que ligava vacina tripla contra o sarampo, a papeira e rubéola a casos de autismo em crianças foi publicado em 1998 mas retirado pela revista em 2004, quando foi comprovada a sua falsidade. Apesar disso, em pleno 2021, grupos antivacina continuam a sustentar essa crença. A própria menção do nome de Hitler neste texto evoca de forma adequada a magnitude dos danos que podem provir das ações humanas motivadas por crenças falsas, mas convenientemente adquiridas.

E não só – informações transmitidas a um grande público, especialmente se forem de alguma forma disruptoras, serão processadas sob o que em Sociologia se denomina o efeito de contágio, ou psicologia das multidões, particularmente agravado na era das redes sociais em que o mundo desenvolvido se comporta como uma só colossal entidade de ideias e valores. Esta “consciência global” adota facilmente ideias indevidamente justificadas, e é altamente susceptível a comportamentos irracionais motivados por uma espiral de pânico (não preciso de recordar o lendário açambarcar de papel higiénico que marcou o início da pandemia no Ocidente). É por essa razão que a gestão de uma crise de grandes dimensões está sempre intrinsecamente ligada à comunicação dessa crise à população geral, com potenciais consequências que podem invalidar por completo os esforços de resolução da mesma.

Assim, porque a Ciência se faz, ou deveria fazer, no espaço público (uma consequência da transparência exigida para a possibilidade de verificação das conclusões), entramos numa área cinzenta – não devem existir ideias inexploráveis, mas existem certamente ideias muito perigosas.

Onde é que isto nos deixa? No mesmo limbo onde começámos. Se é certo que existem temas cuja exploração pode implicar graves consequências sociais, também o efeito de castração da curiosidade científica pode desviar-nos do caminho da boa Ciência. Mas se, por outro lado, criarmos uma partição entre “ideias indicadas” e “ideias desaconselhadas”, uma nova questão trata de se impôr: quem ficará responsável por traçar a linha moral que distingue ambas?