Toda a gente fala de fascismo. Lendo jornais ou vendo televisões fica-se com o sentimento que estamos cercados pelo mal mais negro e que os fantasmas de outras épocas voltaram para nos assombrar de novo. Cercados? É esquecer que o mal já se encontra entre nós. Há também entre nós um fascismo latente que por enquanto não ousa dizer o seu nome e que se finge democrático para melhor nos enganar. Mas é dar-lhe mais algum tempo e vai-se ver o que se vai ver.

Os sinais estão todos aí. A começar por Trump, é claro. Só um louco ou um fascista pode pretender que não é exactamente assim. Razão tinha um amigo meu que, no dia consecutivo à sua eleição, me enviou um mail exigindo o “impeachment já!”. Mas engane-se quem pensar que Trump é o único mal. A Europa está cheia de fascistas que, pouco a pouco, vão tomando conta dos governos, a começar pelos antigos países de Leste e a acabar nos berços da nossa cultura europeia. Se o Brexit não é fascismo, não sei o que é facismo. E a Itália? A França e a Alemanha estão por um triz. De Israel, o melhor é nem falar: fascismo puro. Mas não são governos eleitos pelo povo? E daí? O capitalismo tornou o povo fascista. De resto, a teoria tinha-nos explicado que é assim mesmo que as coisas se passam. O capitalismo é fascista. O fascismo é a verdade do capitalismo.

E se essa imagem do mundo que diariamente nos vendem em doses maciças não fosse mais, no essencial, do que um tecido fabricado à custa de analogias, umas discutíveis porque superficiais e parciais, outras declaradamente erradas e outras ainda efabuladas do princípio ao fim? Se esse mundo fosse largamente imaginário e resultasse antes de tudo o mais de uma incapacidade de, por falta de imaginação ou outra razão qualquer, exercer o discernimento político, o juízo político atento à realidade, preferindo-lhe preguiçosamente o retorno a uma linguagem quase compulsiva que não requer esclarecimento nem justificação, dado o seu forte carácter emotivo, que lhe concede quase o estatuto de uma evidência? Dito de outra maneira: se houvesse em tudo isto uma valente dose de batota?

E se for assim, qual a razão de ser assim? Analogia por analogia, também eu arrisco uma. A arte da primeira metade do século passado (mais a pintura e a música do que a literatura, por razões que têm a ver com a natureza dos seus meios) gerou a uma escala provavelmente inédita um muito geral sentimento de incompreensibilidade. Isto é pintura? Isto é música? As Demoiselles d’Avignon – pintura? Erwartung – música? O choque dessa incompreensão, e o saber-se, com o tempo, o que ela significava como sinal de fechamento e de cegueira para com a inovação criadora deixou marcas que se revelaram difíceis de ultrapassar. O resultado foi, paradoxalmente ou talvez não, uma tendência não menos generalizada do que a anterior, e identicamente conformista, só que de sinal inverso, a tudo aceitar como manifestação de pura genialidade. “Sobretudo que não pensem que eu não percebo!”, é a voz interior que se adivinha por detrás de muitos juízos entusiásticos face à última das insignificâncias que o tempo presente nos oferece. “Sobretudo que não pensem que eu não percebo!”

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Algo de semelhante a isto se passou em matéria política. Não se ter visto, com a devida antecedência, a ascensão da brutalidade sem nome do horror nazi (deixo de lado aqui o comunismo, a que voltarei adiante) provocou um trauma obviamente não menos significativo. “Nunca mais nos apanharão desprevenidos! Estaremos atentos a todos os sinais.” A partir daí, e tal como com a aceitação quase compulsiva e indiscriminada do génio artístico, o fascismo passou a estar em todo o lado. “Sobretudo que não pensem que eu não o vejo!” Mais uma vez, qualquer resistência face a juízos tão maciços só pode ser sintoma de dificuldade em ver o verdadeiro mundo que nos rodeia, um mundo em que o fascismo avança inexoravelmente e que exige, para o seu combate, mobilização total. “Não passarão!”, ouve-se gritado a cada esquina jornalística.

O filósofo escocês do século XVIII David Hume escreveu alguns ensaios fundamentais sobre estética, que ele concebia sobretudo a partir da ideia de sociabilidade. O amor da beleza, o exercício do gosto, era para ele uma actividade essencialmente social. Já o era assim, sem dúvida, para os atenienses do século V a.C., como se pode ver na magnífica oração fúnebre de Péricles que se encontra em Tucídides. Mas as características próprias do século XVIII ressaltam (ao mesmo tempo que a deformam, sem dúvida) essa ideia. Num desses ensaios (“Sobre os padrões do gosto”), Hume desenvolve uma curiosa tese. Sendo a apreciação estética uma actividade essencialmente social, ela manifesta-se, antes de mais, na conversação. Ora, numa conversação, alguém sempre haverá que, temendo a acusação de falta de gosto, tenderá a manifestar o seu pleno acordo com os juízos dos outros sem minimamente os experimentar como uma evidência pessoal, isto é, sem que o juízo que adopta exprima um real prazer efectivamente vivido, o que sem dúvida não o impedirá de proclamar entusiasticamente a sua admiração incondicional pelo objecto da discussão. Hume chama-lhe o simulador, ou o fingidor (como se queira traduzir o inglês pretender). Como se constatará sem dificuldade, o mundo está cheio de fingidores, no sentido de Hume.

E não apenas no que respeita aos juízos estéticos. No que respeita aos juízos políticos também. Muito (não tudo, certamente) do que se ouve sobre a iminência do fascismo no planeta é o resultado dessa simulação que visa antes de tudo o mais evitar o sentimento de que, aos olhos dos outros, passamos ao lado da evidência. A simulação, o fingimento, propaga-se a uma enorme velocidade, tal é o medo que se pense que não percebemos. Daí que, a acreditar nos media, o retorno do fascismo apareça como um facto indisputável que urge combater. O que trás, além disso, o benefício de nos dispensar da análise real das partes doentes das nossas sociedades e da atenção aos problemas efectivos que as habitam. Nada disso é necessário, porque dispomos de um conjunto de palavras simples cuja repetição basta para nos situarmos no campo do Bem e combatermos, pelo exercício dessas mesmas palavras – “fascista!” – o Mal que não precisamos verdadeiramente de inquirir.

Que entre os vários simuladores que nos rodeiam se encontrem muitos que durante décadas e décadas ignoraram militantemente o horror das várias encarnações do totalitarismo comunista não tem que nos surpreender, muito pelo contrário. A prática do fingimento é neles um hábito que vem de longe, quase uma segunda natureza. Uma segunda natureza que lhes permitiu aceitar e colaborar com a maior indústria de fake news que o século XX conheceu, a indústria comunista. Agora andam muito preocupados com a tomada do espaço público pelas fake news alheias. Quem não os conhecer que os compre. O brinde diário é o apetite da censura, a ignorância e a estupidez.