Qualquer religião em que esteja neutralizada a possibilidade de grandes erros, não me interessa. É Satanás aquele que negoceia com sucessos garantidos. O Deus de Abraão, Isaque e Jacob, que é Pai, Filho e Espírito Santo, nunca escondeu que o melhor que tem para nós não acontece sem sérios prejuízos. Daí que parte da paz que me assiste como evangélico não foge ao ver-me associado, com maior ou menor desconforto, a putativas calamidades como o apoio a Trump ou Bolsonaro. É isso que ser evangélico em 2022 pode significar na cabeça das pessoas? Seja. Posso até lamentar mas não é a partir da cabeça dos outros que me guio, de qualquer maneira.

Quando se quer fazer um caminho mais estreito e mais interessante lê-se História, por exemplo, para que o que parece elementar dizer hoje seja desafiado pelo que se diz de ontem. O mesmo se deve aplicar, neste caso, aos evangélicos. Já que a tradição a que pertencem tem uma história de mais de meio milénio, compreendê-los aqui e agora implica conhecer o antes. Por causa de tudo isto, é mais do que recomendável que os leitores ponham as mãos no livro “Aliança Evangélica Portuguesa—100 Anos de História e Comunhão: das origens à atualidade”, escrito pelo Timóteo Cavaco (disclaimer: somos primos, muito amigos e ele é o meu padrinho de casamento). Deste volume trouxe, pelo menos, meia-dúzia de observações acerca de quem são os evangélicos no Portugal de 2022, que passo a desfilar.

Em primeiro lugar, os evangélicos portugueses são lambedores de feridas. Como se sentem notas de rodapé na cultura em que nascem, os evangélicos portugueses são, por um lado, portugueses menos portugueses e, por outro, portugueses a dobrar na tradição de não acreditarem em si mesmos. Com passados tão poupados, emagrecem inconscientemente os seus próprios presentes. Quando se convive com um evangélico em Portugal topa-se que ele tende a ser o primeiro a duvidar da sua própria vocação. O evangélico português ainda não está tão seguro assim que exista mesmo. Existe à parte, ferido e de língua preparada.

Em segundo lugar, os evangélicos portugueses podem ser redundantes porque desnecessariamente isolados uns dos outros. O Timóteo ajuda a explicar: “se, por um lado, as igrejas protestantes em Portugal (…) demonstravam grande entusiasmo e capacidade de realização, por outro lado, evidenciavam uma certa redundância ao criarem organizações ou movimentos que frequentemente repetiam objetivos e iniciativas”. Cada Igreja Evangélica facilmente sente a vontade de inventar a pólvora quando o valor da resistência é uma condição sine qua non. Uma perspectiva panorâmica é um luxo impraticável para quem, como lambedor de feridas, raramente sai do buraco da sua dor.

Em terceiro lugar, os evangélicos portugueses são necessitados da liberdade religiosa que contraditoriamente nem sempre querem reconhecer aos outros. “Os membros da Aliança Evangélica Portuguesa votaram ainda uma moção em que manifestavam a sua preocupação com o avanço de outras expressões religiosas no país, tendo havido uma clara indicação para que os obreiros evangélicos não prestassem a sua colaboração ao «sabatismo, russelismo e seitas semelhantes».” Há umas semanas escrevi acerca das dificuldades de uma liberdade religiosa a sério em Portugal e preciso agora de admitir que até quem mais dela precisa, nem sempre a pratica.

Em quarto lugar, os evangélicos portugueses são susceptíveis a estrelas. “No final da década de 1930 foi muito comentada na sociedade portuguesa a adesão ao protestantismo de Artur Alves Reis, que em 1925 tinha sido o protagonista daquela que ainda hoje é considerada uma das maiores burlas financeiras operadas em território nacional.” Ui. Já tivemos a Nucha (que já não é evangélica), já tivemos a Manuela Bravo (que julgo também já não ser evangélica), já tivemos uma irmã do Cristiano Ronaldo (que julgo igualmente já não ser evangélica)… Valha-nos a Adelaide Sousa Richardson! O síndrome da atracção pela celebridade é talvez ainda mais forte em quem célebre nunca foi.

Em quinto lugar, os evangélicos portugueses ladram mais do que mordem. “As igrejas evangélicas, constituídas esmagadoramente por cidadãos portugueses, não quiseram deixar de se associar às celebrações patrióticas promovidas pelo Estado Novo” e “semelhantes encómios eram dirigidos ao presidente do Conselho de quem se dizia «grande ser o seu espírito de tolerância, o que lhe tem granjeado o reconhecimento e a admiração de todos os cristãos evangélicos».” Bater no Salazar é fácil em democracia mas também nós, deplorados na ditadura, fomos mais mansos do que gostamos de nos recordar. Com tão pouco poder, os evangélicos ainda se impressionam demasiado com ele.

Em sexto e último lugar, os evangélicos portugueses têm uma experiência em grande parte guiada por estrangeiros. Leiam uma vez mais o Timóteo Cavaco: “Promovido por Paulo Irwin Torres, que mais tarde viria a ser presidente da AEP, realizou-se em Lisboa [em 1944] o Quinto Congresso Evangelístico Português, que incluiu uma homenagem ao espírito e trabalho evangelístico da Inglaterra e da América do Norte na evangelização do mundo, no dia 5 de outubro, através de uma visita ao Cemitério britânico, na Estrela, com deposição de flores nas campas de Robert Moreton.” Os evangélicos portugueses ainda têm a sua paternidade simbólica em não-portugueses. Estamos neste Portugal de 2022 ainda sonhando com países que não são nossos em que ser evangélico nos oferece a dignidade que aqui nos parece roubada.

Não sei se sonho com outro país ou com outros evangélicos. Mas não nego que sou tudo isto. Aceitar talvez seja um bom começo.

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