Amava-a sem anúncios, likes ou neons. O amor que tinha para lhe dizer, era ao ouvido: amo-te muito, dizia-lhe baixinho — era só deles, esse amor. Vinte e cinco anos juntos. Desde os dezanove, altura em que ele chegou à cidade fugido do campo estéril do interior quente, colado à raia, sem futuro. Ela ria. Ele aprendeu com ela. Nasceu-lhes uma filha que quase morreu. Mas não.

Ele teve um acidente. Perdeu o trabalho e a identidade, de tão forte o vínculo entre quem era e o que fazia. A vida construída com o trabalho, a ideia de um emprego para a vida e a dedicação à empresa, faziam-no o fiel depositário de um legado de regras e de histórias que se confundiam com a sua própria história. O seu estatuto de homem dissipa-se: não trabalha, não sustenta, não aguenta a dor, deprime-se. E cheio de culpa – um homem não chora. A dor física sufoca-o, confunde-o, não a conhece, não a controla, a presença dela submete-o e isso envergonha-o. Quer ser mais, quer voltar a sentir o olhar da mulher cheio de orgulho nele.

Ela terá percebido o desespero que ele nunca disse. Por ela nunca se atreveu a namorar com a morte, a passear nos carris. Aprendeu a pedir ajuda. E reconstruiu-se com o que apanhou do chão, dos galhos fez árvores, montou luzes, deixou que as mãos lhe dissessem o que fazer, deixou-se arrebatar pela vida sem medo, redescobriu-se artesão. Voltou a ter planos, a fazer projectos, a planear viagens com ela. Voltou a rir.

Domingo. Ele sai para uma caminhada. Ela vai ao café — e cai no chão, morta. A vida apaga-se discreta num passeio tranquilo, num Domingo de contingência. Cinquenta minutos de massagem cardíaca não chegam para recuperar o sopro. A ambulância vem e levam-na.

No hospital encontrou-a morta. Despediu-se, disse-lhe ao ouvido, baixinho, amo-te muito.

Um acidente muda tudo, submete o corpo aos limites da dor e exige o que nem se sabe ter e se aprende a ir buscar. Mas o amor submete o mundo — o Orçamento de Estado, o Tribunal de Contas e o prémio Nobel da Literatura, hoje estão no fundo da hierarquia dos anjos.

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