1 O desespero do Governo para aprovar o Orçamento de Estado (OE) para 2022, um ministro da Defesa vaiado pela tropa, um primeiro-ministro obrigado a pedir desculpa aos patrões, caos nos hospitais (que são recorrentes) e o anúncio em catadupa de greves da função pública, médicos, enfermeiros e professores em novembro (culminando tudo com uma manifestação nacional da CGTP a 20).

Eis a imagem perfeita de um Executivo sem rei nem roque que se arrisca a ir a eleições antecipadas numa má altura (seria péssima, e será?, no próximo ano) — uma má altura que muito se deve a um acumular de erros políticos do primeiro-ministro, dos quais se salienta a casmurrice de não fazer uma remodelação governamental no primeiro semestre deste ano.

É caso para dizer: afinal, António Costa não é assim tão habilidoso.

Chegados aqui, há uma pergunta-chave: se o OE for chumbado, alguém ganha alguma coisa com eleições antecipadas?

2 Vamos ser claros: olhando para as sondagens e para o atual momento político, é muito pouco provável que as eleições antecipadas venham a promover uma maioria de esquerda ou de direita. Logo, se não há uma maioria de nenhum dos dois blocos, é uma absoluta perda de tempo avançarmos para eleições nesta altura do campeonato.

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Comecemos pelo partido que suporta o Governo. Este é o ponto mais baixo do PS de António Costa desde 2015. Depois de quase dois anos a combater a pandemia, o Executivo está claramente desgastado com ministros sem força nem ideias para um novo ciclo — Administração Interna, Defesa, Trabalho, Educação entre outros. E, mais importante do que isso, a retoma económica não só está atrasada como tem cada vez mais incertezas.

A subida dos combustíveis (e de outras matérias-primas essenciais) e as ruturas de stock nas cadeias de distribuição e produção de várias indústrias — tudo isso está a colocar uma pressão desmesurada sobre a inflação. Deixando de lado o Banco Central Europeu (que poderá mexer na taxa diretora, o que terá implicações imprevisíveis nas famílias e no Estado), a subida excessiva de inflação poderá levar a uma retração no consumo e, com isso, desacelerar o ritmo da retoma.

Mesmo que consiga capitalizar a “irresponsabilidade” alegadamente imputada pelos socialistas ao PCP e ao Bloco por não aprovarem o OE, o PS não vai conseguir chegar à maioria absoluta. Ao perder Lisboa e ao descer como desceu nas autárquicas, Costa perdeu a sua aura de vencedor.

E o PCP e o Bloco? Duvido, repito, que façam o papel que o PRD fez em 1987 e contribuam para uma maioria absoluta do PS (ou da direita). Mas deverão ser castigados pelo eleitorado à esquerda.

E aqui o Bloco é o que tem mais a perder. Aquele resultado nas legislativas de 2015 e 2019 (cerca de 9%, acima dos 500 mil votos e 19 deputados) só tem a tendência para descer — e não para crescer. Acresce que já o ano passado votaram contra o OE.

Por muita responsabilidade que o PCP esteja a demonstrar, será sempre o partido que fez chumbar o OE. Pela simples razão de que não se levantou da mesa e esteve negociar até à última. O PS não deixará de capitalizar esse facto.

3 Para avaliarmos ganhos e perdas à direita, temos de ter em consideração as candidaturas de Rui Rio e de Paulo Rangel nas diretas do PSD. E aqui há um ponto prévio: se houver eleições antecipadas, Rio sai logo à cabeça reforçado politicamente. Porquê? Porque queria adiar as eleições internas para que o partido aparecesse unido nessas eventuais legislativas antecipadas. A concretização de uma crise política será um ponto a favor da sua estratégia.

Mas também é verdade que se diga que uma vitória do PS de António Costa nas eleições antecipadas está claramente assegurada com a continuidade de Rui Rio à frente do PSD. Ao contrário do que Rio diz, o PSD não está próximo de ganhar as legislativas, visto que nenhuma sondagem dá os social-democratas minimamente próximos do PS — a esmagadora maioria dos inquéritos de opinião dão o PSD abaixo dos 30%. Não será certamente Rio, que perdeu todas as eleições em que participou como líder do PSD e que ainda não conseguiu demonstrar o que o difere de Costa, que irá mudar isso.

Num cenário em que as eleições antecipadas são convocadas pela chumbo de o PCP e do Bloco ao OE, é natural que António Costa comece à procura de outras soluções. Caso vença as legislativas, claro. Logo poderá ter a tentação de fazer renascer a velha ideia de uma aliança PS/PSD que germina desde o tempo em que Costa era autarca de Lisboa e Rio era autarca do Porto. Costa poderá assim ter mais tempo para conseguir com que o PS beneficie com a retoma económica promovida pelos fundos europeus e Rio poderá chegar ao poder.

Se Paulo Rangel ganhar as eleições internas do PSD, não tenho dúvidas de que essa hipótese do Bloco Central fica sem efeito porque Rangel quererá derrotar António Costa de forma clara. Mais: uma cara nova como a de Rangel poderá mesmo levar o PSD a uma vitória. Reduzida e sem carácter de maioria absoluta, mas a uma vitória.

4 Se Costa tem mais a beneficiar com Rui Rio como líder do PSD, o Chega do André Ventura é o único que lucrará claramente com eleições antecipadas. Porquê? Porque em qualquer cenário, Ventura crescerá sempre — e quase exponencialmente.

É verdade que um voto no Chega não tem, por exemplo, o mesmo peso proporcional que um voto na Iniciativa Liberal — pela simples razão que uma parte significativa do seu eleitorado está em círculos eleitorais pequenos nos quais o Chega nunca conseguirá eleger um deputado (como Faro, Beja e Évora, por exemplo) e os liberais têm a sua força nos maiores círculos (Lisboa e Porto).

André Ventura só pode aumentar significativamente o seu grupo parlamentar se tiver o mesmo resultado que as sondagens lhes dão: cerca de 7%. Há quem diga que essa será a melhor forma de vermos como são os restantes quadros do Chega numa bancada parlamentar alargada, logo o resultado pode ser uma espécie de cordão sanitário.

A Iniciativa Liberal pode ser outro partido a beneficiar com eleições antecipadas mas o partido está um pouco ferido com o falhanço em eleger um vereador em Lisboa. Subirá mas nunca tanto como Ventura e o Chega.

Resumindo e concluindo: só Rui Rio e André Ventura têm um verdadeiro interesse em antecipar as eleições, sendo que o primeiro está dependente de uma vitória nas diretas do PSD. Eis algo que deve dar que pensar ao PCP e ao PAN antes de decidirem o seu sentido de voto sobre o OE.

5

Se quisermos ser verdadeiros, temos de fazer outra pergunta: alguém está verdadeiramente surpreendido com o atual cenário da extrema-esquerda do PCP e do Bloco de Esquerda chumbarem o Orçamento de Estado mais à esquerda dos últimos seis anos?

A desagregação da geringonça sempre foi inevitável. Não só devido à teoria dos ciclos políticos, não só devido ao desgaste natural que qualquer Executivo tem no segundo mandato (a única exceção foi o segundo Governo de Cavaco) mas também porque esta aliança sempre foi contranatura por desrespeitar a história do PS.

E, mais importante do que tudo, a tal queda do muro que António Costa sempre se vangloriou (Henrique Monteiro diz, e bem, no Expresso que “foi o PS quem saltou o muro para o outro lado”), conduziria sempre, como conduziu, a uma divisão binária esquerda/direita que impede o diálogo entre as forças moderadas.

Provavelmente ainda não será em 2022, mas é inevitável que o PS prove do seu próprio veneno em breve.

Texto alterado às 9h02m