Aparentemente, a nossa classe política anda muito preocupada com o crescimento do Chega. Os jornalistas, esses, por vezes parecem histéricos. Mas o que mais admira é a surpresa desta gente toda que anda na política portuguesa há décadas.

Começo com mais um exemplo da hipocrisia organizada em que se está a tornar a política nacional. Todos se indignaram com as declarações infelizes de André Ventura. Foram infelizes, embora irónicas, mas foram apenas declarações. Mas as mesmas pessoas nada disseram sobre uma das maiores fraudes políticas dos últimos anos. Cansado de nunca eleger qualquer deputado, em Portugal ou na Europa, o Livre arranjou uma mulher negra e com uma deficiência física para conseguir finalmente eleger um deputado. Como já se viu, não havia qualquer relação política profunda entre o Livre e Joacine. O Livre usou a Joacine como uma espécie de barriga de aluguer política. Mas ela resolveu ficar no Parlamento contra a vontade do partido. Fez muito bem. O oportunismo do Livre foi repugnante. Pagou o preço que merecia.

Passemos agora à análise (aviso já que pode ser um pouco maçadora, por isso quem não está para maçadas pode parar de ler agora). A década que passou trouxe uma série de tempestades políticas ao nosso país. Tudo começou com a bancarrota de 2011. Portugal foi obrigado a pedir ajuda financeira à União Europeia e ao FMI, como se fosse um país pobre do terceiro mundo e não um membro da União Europeia, uma das regiões mais prósperas do mundo. Um país que havia recebido bilhões de fundos durante mais de duas décadas foi à falência. Como foi possível isso acontecer? O que pensaram os portugueses? Que foi o resultado da crise financeira global? Isso foi conversa de quem estava no poder e de alguns economistas, que são capazes de dizer seja o que for para não criticar um governo socialista. Para a maioria dos portugueses, a falência nacional foi resultado da corrupção e da irresponsabilidade financeira do governo socialista de Sócrates. A maioria dos portugueses passou a olhar para a política como um modo de se conseguir benefícios pessoais, como um modo de enriquecimento individual, e não como um serviço público. A falência de um país tem consequências terríveis para a imagem de quem nos governa. Só não percebe isso quem não quer.

Os três anos de troika apenas aumentaram o sofrimento e a desilusão dos portugueses. Muitos pensionistas da classe média trabalharam uma vida inteira, a maioria sem nunca ter recebido ordenados elevados, e viram as suas pensões reduzidas. É verdade que aqueles com pensões mais baixas foram poupados, mas muitos dos que sofreram cortes vivem no limite das suas pensões. Tudo o que se passou entre 2010 e 2015 provocou muita desilusão, piorou a imagem dos partidos e afastou muita gente da política.

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Estava o país a começar a acalmar e chegou a revolução política de 2015 chamada geringonça. A curto prazo a habilidade, o “optimismo irritante” de António Costa, a simpatia e os afectos de Marcelo Rebelo de Sousa tornaram o ambiente mais ligeiro, aliviando o país. Mas os efeitos foram mais aparentes do que reais. A aliança do PS com com os comunistas e com os bloquistas foi uma tempestade política, cujas consequências só agora estamos a perceber. A primeira foi a mais óbvia: a raiva de uma parte do eleitorado de direita.

Para grande parte do eleitorado de direita, os socialistas levaram o país à falência, pediram ajuda externa e foram-se embora. Um governo de direita foi obrigado a fazer o trabalho duro e difícil e, apesar de tudo, conseguiu ganhar as eleições em 2015. No entanto, apesar da vitória eleitoral, o PS regressou ao governo apoiado pelas esquerdas radicais. Reconheço que vivemos numa democracia parlamentar e a solução de António Costa foi inteiramente legítima e politicamente hábil. Mas esse não é ponto central. A política não se reduz a argumentos racionais, tem uma dimensão emocional importante. E parte da direita ficou magoada e zangada. Não deveria custar muito perceber isso.

Com uma parte da direita zangada, Costa formou um governo maioritariamente de ministros que tinham estado no governo que levou o país à falência. Pareceu que estava a gozar com os portugueses. Além disso, um presidente da república eleito por grande parte da direita zangada começou a dançar serenatas à chuva com Costa e a tirar selfies com tudo o que é ministro socialista. Obviamente, Marcelo não foi eleito para combater o governo e do seu ponto de vista interessava-lhe manter uma boa relação com os socialistas. Mas Marcelo Rebelo de Sousa poderia ter pensado um pouco na direita zangada que votou nele e ter sido mais discreto e compreensivo em relação às mágoas de parte do seu eleitorado. Ainda por cima um político que se orgulha da sua inteligência emocional. Mas Marcelo não fez nada disso. A direita zangada sentiu-se também humilhada e abandonada.

Mas a geringonça provocou outros efeitos. Em primeiro lugar, aumentou a arrogância do Bloco. Deslumbrados com o poder, tentaram impor a sua agenda cultural revolucionária aos portugueses sem olhar a meios nem a limites. Passaram a atacar sem dó a noção de família tradicional. Há uma grande diferença entre defender os direitos de novas formas de vida familiar e atacar a família tradicional, o que obviamente um partido revolucionário como o Bloco nunca conseguirá entender. Quiserem também proibir tradições e costumes portugueses, como a tourada e a caça, luta à qual se aliou o PAN. Por fim, começaram a atacar a própria história de Portugal e o passado dos portugueses, neste caso com o Livre a juntar-se à festa. As esquerdas radicais acreditam mesmo que podem tentar alterar a identidade de um dos países mais antigos da Europa sem que isso tenha consequências políticas? Dito de outro modo, enlouqueceram ou ficaram cegos com a ideologia e o poder?

O PCP também pagou um preço elevado com a geringonça: juntou-se a um dos inimigos capitalistas de sempre, abandonando a classe trabalhadora. Passaram décadas a atacar o PS, e por vezes com violência, e de repente aliam-se aos antigos inimigos. Terão explicado isso bem aos seus eleitores? Os últimos resultados eleitorais sugerem que não. Com a geringonça, o PCP perdeu eleitores que jamais recuperará.

A geringonça mostrou ainda mais duas coisas. O radicalismo deixou de pagar um preço politico. Desde que consigam os votos suficientes, os partidos radicais acedem ao poder. Desde 2015, o poder deixou de estar vedado aos radicais ou aos extremistas. Como explicou Costa, já não há muros para manter radicais fora do poder. André Ventura aprendeu com Costa que no dia em que alcançar 10% de votos fará parte de um governo de direita. E o PSD também vai aprender. Será uma questão de tempo e de saudades do poder. Além disso, a geringonça também mostrou que uma aliança com partidos extremistas não implica perder votos ao centro. Mas uma lição de Costa para o PSD aprender.

A década que passou trouxe demasiados choques e convulsões aos portugueses. Foram crises económicas, falências financeiras, sofrimentos sociais, casos de corrupção (envolvendo um primeiro ministro), mentiras, faltas de respeito com os portugueses, irresponsabilidades dos governos e revoluções políticas. A década que passou foi a mais complicada e radicalizada desde a de 1970. A nossa classe política acreditou que depois de dez anos assim, tudo ficaria na mesma?

Nas últimas eleições, metade dos portugueses não votaram. Repito: metade. A culpa foi dos partidos que os abandonaram. Muitos deles continuarão absolutamente desligados da política e não votarão. Mas muitos não se sentem representados pelos partidos políticos tradicionais. Desses, seguramente que muitos não concordarão com Ventura em relação a certas questões e não concordam com tudo o que ele diz. Mas querem castigar os partidos tradicionais. Só precisam de um partido fora do sistema, para voltar às urnas. Cada vez que o sistema ataca o Chega, está a dizer aos portugueses desiludidos e zangados para votarem no partido de André Ventura. E é isso que eles vão fazer. Os líderes políticos nacionais querem saber quem são os culpados do crescimento do populismo em Portugal? Vejam-se ao espelho. Não culpem é os eleitores. Em democracia, os políticos não mudam de povo. Mas o povo muda de políticos. Não têm notado o que se passa na Europa, no Brasil e nos Estados Unidos?