Agora que Jordan Peterson já chegou, arrasou e partiu para o seu país, deixando para trás a habitual esteira de frases polémicas sobre as questões de género, o amor, a intimidade e o casamento, entre muitas outras, eis que está a chegar outro protagonista do momento: Tomáš Halík.

Jordan Peterson fez transbordar o átrio principal do novo campus da Nova SBE. Estive lá e cruzei-me com ele no preciso momento em que se preparava para descer triunfalmente a escadaria principal. Cá em baixo estavam mil pessoas e todas se levantaram para o aplaudir. As palmas acompanharam-no do primeiro ao último degrau e fiquei impressionada, pois não costumo estar perante gurus que antes de começarem a falar são massivamente aplaudidos de pé.

Tomáš Halík não tem nada a ver com Jordan Peterson, é certo, mas a legião de fãs que ambos reúnem à sua volta, a honestidade intelectual de cada um, mais o eco que fazem as ideias de um e de outro, são uma força comum. Menos polémico e mais universal — vidé a atribuição do Templeton Prize for Progress Toward Research or Discoveries about Spiritual Realities, o único prémio que vale mais que o Nobel, e é dado a uma pessoa viva que dê um contributo excecional para a afirmação da dimensão espiritual da vida – o checo Halík chega a Portugal poucos dias depois de o canadiano Peterson cá ter estado, também ele para lançar o seu último livro. Afinal têm mais traços comuns: o timing, a contemporaneidade, a escrita livre, as convicções fortes e o gosto por belas cidades como Lisboa.

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“Diante de Ti Os Meus Caminhos” é uma obra esperada por todos os seus leitores e seguidores. Tomáš Halík conta finalmente a história da sua vida e fala sempre na primeira pessoa. O seu testemunho é revelador e muito transformador. Descreve a sua infância no estalinismo e a sua conversão ao cristianismo tendo como pano de fundo a “Primavera de Praga’ e a ocupação soviética em 1968. Diz como foi a sua ordenação clandestina (como já escrevi aqui, noutra crónica, nem a sua mãe soube que foi ordenado, só viria a saber muito depois) e como trabalhou na “Igreja clandestina”.

O livro é uma combinação de autobiografia historicamente documentada, com as habituais reflexões teológicas, considerações filosóficas e derivas existenciais. Halík abre literalmente o livro da sua vida e fala com extraordinária liberdade interior, seriedade intelectual e uma incrível franqueza sobre as suas crises e conflitos internos.

“Quando hoje se fala sobre o sacerdócio católico, mais cedo ou mais tarde, aparece na ordem do dia a questão do celibato. Recebi a ordenação sacerdotal e o compromisso de celibato apenas aos trinta anos. Nunca o quebrei. Devo acrescentar, no entanto, que em certos períodos da minha vida, a vida em abstinência sexual custou-me muitas lutas interiores. Não tenho a certeza de que Deus realmente quisesse que eu gastasse tanta energia nessa direção.”

Realista e conhecedor da diversidade das realidades em si e à sua volta, este é o mesmo Halík que aconselha casais e ouve pacientemente confissões por vezes muito difíceis de pessoas singulares. Quanto a pontos sensíveis e voltando às questões complexas da intimidade e da sexualidade, que tanta tinta têm feito correr em todos os tempos, Halík é muito frontal.

“Sempre achei honesto chamar a atenção dos candidatos ao sacerdócio e à vida monástica, para não se deixarem embalar pelo facto de a questão erótica e sexual não ser tão perturbadora no momento em que mais ‘atormenta’ os outros homens da sua idade. Um jovem costuma arder tanto pelo seu ideal religioso que, muitas vezes, bastante espontaneamente e sem muito esforço, faz evaporar a sua sexualidade, chegando a uma conclusão tola de que será sempre assim e já ‘está safo’. Acontece frequentemente, por volta dos trinta anos, pela via natural (…) um momento em que como um manancial subterrâneo inesperado, brota o desejo pela mulher, que costuma ter uma forte carga sexual. E porque tal homem não está muitas vezes preparado e é inexperiente, acaba por ser apanhado desprevenido e, na quarta década da sua vida, tem muito com que trabalhar!”

O livro de Tomáš Halík não só não está centrado nesta questão como, pelo contrário, lhe dedica apenas algumas páginas, mas como o tema é sensível e acende grandes discussões pelo mundo fora, sobretudo porque todos estamos conscientes das perversidades que se podem cometer por padres que distorcem a sua perceção da sexualidade, ou não vivem bem o seu voto de castidade, detenho-me eu neste ponto, para reforçar o desassombro com que este sacerdote se atira à verdade.

“Quando se aprende da má literatura e de confessores neuróticos a rejeitar e denegrir a sexualidade como tal, e se lhe tem um horror subconsciente, então estão criadas as condições para uma neurose, ou para uma reviravolta dramática e muitas vezes traumática no percurso da vida”.

Ler o que escreve Halík dá que pensar e ajuda a pôr muita coisa em perspetiva. Amanhã estará em Lisboa e vai, também ele, encher auditórios e anfiteatros. Não sei se será aplaudido só no fim ou logo à chegada, mas sei que também ele vem para colocar o dedo em muitas feridas, destapar alguns véus e dissipar medos. Mesmo que sejam apenas os medos de falar e perguntar, de assumir opiniões e posições.

Termino como comecei, sublinhando a divergência de caminhos e uma convergência de demandas interiores: Jordan Peterson e Tomáš Halík podem realmente não ter muito em comum, mas ambos levantam questões sérias, desfazem tabus e ajudam a fazer boas perguntas. Peterson disse coisas meio indecifráveis, porventura truncadas pelos media, sobre o casamento e a felicidade. Halík adverte os que estão a pensar casar. Dá conselhos práticos e faz avisos concretos (que constam num dos seus outros livros): “um casamento em que se entre à pressa, nessa fase poética, mas ainda imatura, poderá acabar em desapontamento mutuamente amargo dos dois cônjuges, quando o encanto inicial se dissipar, e em punição mútua até ao fim das suas vidas, porque um deles não conseguiu satisfazer as expectativas irrealistas do outro”.

Estes dois autores nunca estiveram juntos e percebo que ninguém os junte nem sequer numa crónica, mas compreendo a legião de seguidores de cada um.